Na viagem de trem mais louca do mundo, você vai sentado em minério de ferro
22º42'N, 12º27'O
Ferrovia das minas de ferro
Zouérat, Tiris Zemmour, Mauritânia
Maria-fumaça é passeio Nutella. Raiz mesmo é andar de maria-fuligem-tóxica, no meio do deserto e em um dos países mais inóspitos para turistas do mundo.
A Mauritânia ocupa um grande território, pouco menor que o Pará, no noroeste da África, na transição do Magreb para a África Subsaariana. Ex-colônia francesa, conquistou a independência em 1960, e desde então vem mantendo, como base da economia, a pesca e a extração de minério de ferro.
Em 1963, o país inaugurou uma monumental ferrovia para explorar o ferro. O trem é um colosso: tem mais de 200 vagões e quatro locomotivas — esse sistema de tração distribuída, com locomotivas espalhadas pela composição, permite a operação de trens gigantes e pesados, como é o caso dos que operam na Estrada de Ferro Carajás, que liga a Serra dos Carajás, no Pará, a São Luís, no Maranhão.
O trenzão da Mauritânia pode chegar a 3 quilômetros de extensão, carregando, a cada viagem, 17 mil toneladas de minério de ferro. Além dessas montanhas de minério, o trem também leva, ocasionalmente, passageiros, que podem viajar de maneiras diferentes.
Quem chega à estação de carro pode acoplar o veículo na ponta da composição e viajar no próprio carro. Dá também para ir de um jeito mais convencional, no vagão de passageiros. Ou, então, o que cada vez mais turistas aventureiros têm feito, subir em qualquer vagão e ir montado no minério de ferro.
Viajar dessa maneira não é uma rota turística oficial. Não é nem um meio de transporte regulamentado no país. Ou seja, não há nenhuma norma de segurança. Mas é algo que tem rolado mais, entre locais e estrangeiros, porque é de graça. Como se trata de uma paisagem surreal servindo de pano de fundo para uma experiência peculiar, para dizer o mínimo, mais viajantes estrangeiros têm feito isso.
O suíço Nicolai Petek, que está dando a volta ao mundo para conhecer todos os países soberanos do planeta ("sim, mais uma dessas pessoas", ele se apressa em reconhecer) considerou a viagem no trem de ferro o maior destaque de sua passagem pela Mauritânia.
Isso em um país que, por mais que não tenhamos muita noção, tem seus atrativos naturais e culturais, incluindo alguns patrimônios da Unesco e estruturas misteriosas que são visíveis do espaço. Mas, para Petek, o melhor do país é mesmo a contemplação de quilômetros e quilômetros de deserto por horas a fio, sem ver nenhum sinal de vida humana (a Mauritânia é um dos países menos densamente povoados do mundo).
A viagem
Em 1975, a Mauritânia anexou o sul da possessão espanhola do Saara Ocidental, enquanto o Marrocos ocupou o norte. A população local se rebelou, e o movimento Frente Polisário liderou ataques que acabaram desativando a ferrovia, que em dado trecho atravessa a fronteira.
Isso minou a economia da Mauritânia, o que provocou um golpe de Estado no país e um acordo de paz com o Saara Ocidental, que, por sua vez, passou inteiramente ao domínio marroquino. Em 1981, a Mauritânia se tornou o último país do mundo a abolir a escravidão formal.
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Quero receberA ferrovia eventualmente retomou as atividades. Com a divulgação na internet, em especial de blogueiros de turismo extremo e influenciadores do naipe "topa tudo por um like", ela entrou no radar. No ano passado, um casal de influencers croatas decidiu fazer suas fotos de casamento no trem. Você pode imaginar como ficou o vestido de noiva.
A viagem é longa, atravessa um dos ambientes mais brutos da Terra, o sol é inclemente durante o dia, e a noite é fria, quando não gélida. Não há abrigo, muito menos banheiro. Não há comida, é claro, então você precisa levar, de preferência bananas, sanduíches embalados ou qualquer coisa com uma camada entre suas mãos imundas de fuligem e a comida.
Do topo de um vagão, a vista se estende ao infinito do Saara. Caravanas de beduínos aparecem aqui e ali, e o pôr do sol é de guardar na agendinha das grandes memórias. À noite, a vista se resume ao céu estrelado, à Via Láctea pulsante, que pode fazer até esquecer, por um momento, a falta de conforto.
O espanhol Joan Torres, do "Against the Compass", blog de viagem dedicado a países de um turismo alternativo que beira o inexistente (como a Mauritânia), recomenda começar a viagem em Zouérat, onde estão as minas, no nordeste do país, a 700 quilômetros da costa. Pode soar logisticamente estranho começar longe das grandes cidades, mas ele explica que, assim, você pega os vagões cheios, então pode viajar em cima do minério de ferro, de onde a vista é realmente impressionante. Caso contrário, você iria dentro de um vagão vazio, olhando apenas o céu.
Para escolher em qual vagão ir, é uma decisão meio que onde sentar na montanha-russa. Tem quem prefira a emoção dos primeiros carros, tem quem prefira o fim, admirando o próprio trem serpenteando o deserto. Essa opção tem o porém da fuligem dos vagões à frente.
Sim, tem toda a fuligem envolvida, algo cancerígeno quando alguém se expõe anos a fio a isso. Mas se estiver com olhos, rosto e a maior parte possível do corpo cobertos, dá para encarar, ele explica.
O ponto final da viagem é Nouadhibou, segunda maior cidade da Mauritânia. Com pouco mais de 100 mil habitantes, tem muito mais opções de encontrar uma cama e um chuveiro do que na acanhada Zouérat. Eis aí outro motivo para terminar o trajeto na maior cidade, em vez de começar.
A viagem dura, ao todo, cerca de 20 horas. É extenuante, então, se preferir, dá para fazer uma parte acima dos vagões e outra dentro do trem, como um ser humano normal. É só pagar a passagem, algo em torno de 15 euros, e mudar quando o trem para em Choum. Em cima do minério, lembrando, é de graça.
Segundo Torres, até que ir sentado lá em cima tem seu conforto, quando você se acostuma. O minério é macio, se assemelha a areia. Se quiser tentar descansar um pouco dá pra levar o saco de dormir para um canto mais protegido, se encolher e admirar o céu estrelado.
Ou então é só o cansaço falando mais alto. Acontece nos melhores perrengues.
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