Ilha em continente perdido é lar do 'inseto mais raro do mundo'
31º45'S, 159º14'L
Pirâmide de Ball
Ilha de Lorde Howe, Nova Gales do Sul, Austrália
Se eu fosse editor da retrospectiva dos fatos mais marcantes do ano, na lista de grandes assuntos de 2023, ao lado de "Barbenheimer", do ChatGPT, do Ozempic, da Taylor Swift e da volta da calça cargo, daria um espacinho para falar de continentes perdidos. Sim, porque se tivemos naufrágios retumbantes este ano (o sonho de proximidade da paz no Oriente Médio, muitos casamentos de celebridades, a mina da Braskem em Maceió, o Twitter, o submersível Titan, o Botafogo…), tivemos continentes inteiros que emergiram, metaforicamente falando.
Em que outro ano a imprensa falou não só de um, mas de dois continentes perdidos? Em novembro, cientistas dos Países Baixos anunciaram que descobriram o paradeiro da Argolândia, que surgiu há 155 milhões de anos. Com o passar das eras, ela se separou da Austrália e se fragmentou em ilhas menores. Umas afundaram, outras estão na Indonésia e em Mianmar.
Em outubro, cientistas neozelandeses divulgaram o mapa definitivo de outro continente perdido. Com amostras retiradas do fundo do oceano, eles conseguiram definir os limites da Zelândia.
Há cerca de 80 milhões de anos, a Zelândia começou a se separar do supercontinente Gondwana. Mas, diferentemente dos continentes vizinhos, Austrália e Antártida, ela submergiu.
A Zelândia já foi descrita como um microcontinente ou um continente submerso. Tem cerca de 4,9 milhões de quilômetros quadrados, dos quais apenas 286 mil quilômetros quadrados não estão abaixo da superfície.
Essa porção acima do nível do mar corresponde, como você deve ter imaginado, à Nova Zelândia. Mas não só ela. O continente também inclui um punhado de territórios australianos e a Nova Caledônia, uma coletividade ultramarina da França (que já foi assunto aqui na coluna).
Um desses territórios da Austrália é Lorde Howe, um arquipélago de ilhas vulcânicas cuja população gira em torno de 400 almas. Não há sinais de que povos polinésios tenham ocupado essas ilhas de alguma forma no passado, então temos aqui um caso em que podemos usar o verbo "descobrir" numa boa, sem asterisco, nota de rodapé ou culpa "eurocatólica".
Pois foram os ingleses que descobriram essas ilhas no século 18. Deram a elas o nome de um ilustre compatriota.
Richard Howe era o Primeiro Lorde do Almirantado, o comandante da marinha britânica, quando as ilhas foram descobertas, em 1788. Quem decidiu homenagear lorde Howe foi o capitão de um navio que transportava presidiários de Sydney, algo comum naquela época (toda a Nova Gales do Sul, onde fica Sydney, era uma colônia penal dos ingleses).
Henry Lidgbird Ball era o nome dele. Batizou o arquipélago com o nome do comandante supremo, numa providencial e bastante comum puxada de saco, mas garantiu para si a homenagem na ilha mais impressionante do conjunto, uma agulha vulcânica de 572 metros de altura que passou a ser chamada de Pirâmide de Ball.
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Quero receberA Pirâmide de Ball é uma das principais ilhas de Lord Howe, e a mais vistosa delas. A tal "pirâmide" é um vulcão erodido que se formou há mais de 6 milhões de anos. É uma vista impressionante: a ilha é maior em altitude do que em extensão, são só 300 metros para atravessá-la, o que deixa o cenário ainda mais dramático.
Nenhuma pessoa mora em Ball, mas desde que o primeiro geólogo a visitou, em 1882, ela intriga cientistas e instiga montanhistas (foi escalada pela primeira vez em 1965).
O acesso chegou a ser barrado por um tempo, mas desde os anos 1990 ele é permitido, com restrições. É um lugar inóspito e distante para humanos, mas para uma criatura específica, ela é o paraíso.
A Pirâmide de Ball é o único lugar conhecido habitado por um tipo de bicho-pau chamado lagosta-de-árvore. Ele já foi definido como "o inseto mais raro do mundo", porque foi declarado extinto no começo do século passado, até ser redescoberto em 2001.
Também chamado de bicho-pau-da-ilha-de-lorde-howe, o Dryococelus australis passou 40 anos desaparecido até que voltou do mundo dos extintos em 1964, quando um grupo de montanhistas encontrou um espécime. Ele estava morto, é verdade, assim como os muitos outros encontrados nos anos seguintes, explicam Jim Smith e Keith Bell no livro "South Pacific Pinnacle: The Exploration of Ball's Pyramid" ("O pináculo do Pacífico Sul: a exploração da Pirâmide de Ball", sem edição brasileira).
Até que, finalmente, em 2001, um grupo de 24 indivíduos foi descoberto, e o bicho-pau ganhou a fama de mais raro do planeta. Afinal, ele não habita nenhum outro lugar. O que nem sempre foi a realidade.
A lagosta-de-árvore é um inseto enorme, que pode chegar a 20 centímetros de comprimento. Ela já foi muito comum em Lorde Howe, e pescadores a usavam como isca.
Mas, acredita-se, a chegada de um navio de mantimentos em 1918, que trouxe também uma invasão de ratos-pretos, acabou com aquela realidade. Dois anos depois, já não se via mais nenhuma lagosta-de-árvore em Lorde Howe.
Passaram-se 80 anos e o bicho foi reencontrado vivo. Uma notícia pra lá de incomum. Toda a população de uma espécie concentrada em uma única arvorezinha, num rochedo sem fonte de água doce, praticamente sem plantas.
Mais tarde, zoológicos da Austrália e dos Estados Unidos que tinham coletado casais conseguiram fazer com que eles se reproduzissem em cativeiro. A lagosta-de-árvore chegou a uma população próxima a mil indivíduos, o que já deve tornar inválida a fama de inseto mais raro.
Em todo caso, ele ainda é um inseto ameaçado de extinção, encontrado na natureza apenas em um rochedo inóspito no Mar da Tasmânia que representa o que sobrou de um antigo continente hoje quase inteiro submerso. O continente afundou, e a "lagosta" subiu nas árvores.
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