Sonho de verão: a fonte de onde brota cerveja em praça pública

O nome do lúpulo é uma referência à Estíria, um ducado que fez parte de dois importantes impérios europeus, o Romano-Germânico e o Austro-Húngaro. No século 19, nos tempos da imperatriz Maria Teresa da Áustria, o Vale do Baixo Savinja, na Estíria, se tornou uma referência regional na produção de lúpulo.

Era uma época em que as estações do ano ditavam o ritmo do campo, e o campo determinava o calendário social e cultural das comunidades por meio das mudanças de estações. Em meados de agosto, quando os trabalhadores, vindos de diversos cantos, enchiam o vale e iniciavam a colheita, era sinal de que o verão estava no fim.

Pelo menos 15 mil pessoas desembarcavam nas estações ferroviárias de ?alec e outras cidades para o trabalho. Homens com varas compridas e mulheres com cestas nas mãos colhiam o lúpulo nos campos.

No fim do dia, o patrão averiguava a área trabalhada e pagava a cada um o correspondente pelo material coletado. Em seguida, os lavradores eram levados em carroças para o descanso necessário, porque amanhã tem mais.

De lá para cá, muita coisa mudou. O trabalho se modernizou, a cervejaria que havia em ?alec fechou as portas e o Ducado da Estíria não existe mais.

A Estíria sobreviveu a séculos e séculos das corriqueiras guerras e invasões da Europa, até que deixou de existir em 1918, quando o fim da Primeira Guerra Mundial redesenhou o mapa do continente — o ducado foi desmembrado para integrar a Áustria e o Reino da Iugoslávia, dois dos novos países que surgiram naquele contexto. Décadas mais tarde, o reino e depois república socialista da Iugoslávia também morreu, e um dos novos países que surgiu dos escombros foi a Eslovênia.

A cervejaria encerrou as atividades naquele mesmo ano de 1918, mas a Estíria seguiu as tradições alcoólicas. É conhecida pelo vinho branco (em especial os rieslings de Ljutomer) e, ainda mais, pelo lúpulo.

A pequenina Eslovênia, com pouco mais de 2 milhões de habitantes (mais ou menos a população de Manaus) é uma potência no assunto. Trata-se de uma das principais produtoras de lúpulo do mundo, e uma das mais ricas: segundo o Instituto Esloveno para Pesquisa e Produção de Lúpulo, existem 23 variedades nesse país de meros 20 mil quilômetros quadrados.

Beba conhecimento

Quem estiver nesse lindo país, cujas geografia e cultura têm nítida influência dos vizinhos Áustria, Itália e Croácia, pode dar um pulo em ?alec para um tour cervejeiro. A cidade abriga um museu inteiro dedicado à cultura e à indústria do lúpulo no país.

Instalado em um antigo galpão de secagem de lúpulo, o museu exibe roupas, instrumentos e outros objetos ligados à produção. Também explica as tradições da colheita e os eventos ligados a ela, como a eleição da princesa e do ancião do lúpulo.

Bem, você pode até visitar o museu para sanar a curiosidade. Mas todo bebedor de cerveja vai a ?alec para beber da sua famosa Fontana piv Zeleno zlato, ou Fonte de Cerveja Ouro Verde.

Inaugurada em 2009, a Ouro Verde é a primeira fonte de cerveja do mundo. Na prática, é um bar instalado em uma praça.

São duas fontes em um formato que simboliza as flores de lúpulo. Uma tem água que passarinho bebe. A outra tem seis torneiras de chope.

Não é grátis, e ainda bem. Álcool de graça sem parar em praça pública é algo inviável por motivos de saúde pública e de economia.

Para usufruir, basta comprar uma caneca específica, projetada pelo designer esloveno Oskar Kogoj, à venda em diversos pontos da cidade. Ela vem com um chip, que libera o acesso, limitado, às torneiras.

A fonte fica aberta de abril a outubro, durante os meses mais quentes no país. É a época em que o cheiro de lúpulo se espalha no ar e festivais de verão animam a cidade.

Cervejas ameaçadas

Só que as mudanças climáticas ameaçam toda essa perfumada cultura. Um estudo divulgado pela Nature em 2023 analisou os efeitos causados nas áreas de cultivo de lúpulo na Eslovênia, na Tchéquia e na Alemanha.

Os pesquisadores compararam os períodos 1971-1994 e 1995-2018 e constataram um declínio nos índices de alfa-ácidos, um dos principais compostos químicos do lúpulo e responsáveis pelo amargor da cerveja.

"O rendimento médio anual caiu 19,4% em Celje", informam os autores, citando uma cidade da Estíria analisada no estudo. "A taxa média de alfa-ácidos caiu 34,8% em Celje."

Eles preveem que, nesse ritmo, as áreas produtoras dos três países estudados terão, em média, uma perda de rendimento e de alfa-ácidos de até 18% e 31%, respectivamente. As mudanças climáticas fizeram com que as épocas de plantação começassem duas semanas antes, o que deslocou a maturação das plantas para o período mais quente da estação, o que, por sua vez, prejudicou a qualidade do lúpulo.

Isso significa que os produtores precisarão se adaptar. Segundo o escritor especializado Jeff Alworth, eles podem investir em novos sistemas de irrigação, transferir as plantações para locais mais elevados e frios ou desenvolver variedades mais resistentes.

Tudo isso pode ter impacto no resultado final da cerveja.

As estações que começavam e terminavam regradamente, que pautavam o trabalho no campo e a vida em comunidade, vão ficando mais bagunçadas. E a gente que se vire com a lambança que fez com o clima.

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