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Reportagem

Mudanças climáticas deixam neve na Antártica verde e vermelha

62º23'S, 59º30'O
Ilha Robert
Ilhas Shetland do Sul, Antártica

É difícil imaginar uma época e um lugar em que você poderia entrar em um elevador e mandar aquela: "Que tempo doido, hein?" do que a Península Antártica em fevereiro de 2020. O mundo estava mais preocupado com um certo vírus que dali a pouco afundaria a nós todos em uma traumática pandemia, mas houve outras notícias alarmantes naquele verão.

Em 9 de fevereiro, três dias após o registro da maior temperatura para a região, o cientista brasileiro Carlos Schaefer testemunhou um preocupante recorde no termômetro: 20,75 °C. Foi a maior temperatura registrada não só na península, como em todo o continente.

A frente fria que passava por São Paulo na mesma semana fez com que estivesse tão frio na Avenida Paulista quanto na Antártica. Isso sim era conversa de elevador.

Fenômeno cria paisagens surreais, mas desperta o alerta vermelho
Fenômeno cria paisagens surreais, mas desperta o alerta vermelho Imagem: Getty Images/iStockphoto

A medição foi feita na Ilha Seymour, também chamada de Marambio, em referência à base científica argentina de mesmo nome que funciona ali.

Em Seymour e em diversos outros pontos da Península Antártica, um dos locais onde a temperatura média mais subiu nas últimas décadas, um fenômeno curioso tem acontecido com mais frequência nos últimos anos: a neve verde. Trata-se de uma alga que se prolifera em condições bem específicas.

Também chamadas de "alga da neve" ou "neve melancia", por causa dos tons de verde, vermelho e rosa que produz, essa alga microscópica chega ao nirvana quando as temperaturas da água estão pouco acima do zero grau. É o céu na terra para ela.

Como os lugares menos frios da Antártica estão ficando cada vez menos frios, eles oferecem condições ideais por mais tempo ao longo do ano, e a alga faz a festa.

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É um fenômeno diferente do que causa a "cachoeira de sangue" na Antártica.

Lá, as mudanças climáticas não têm ligação direta.

Um estudo publicado na "Nature" em 2020 mapeou, com o uso de imagens de satélite, as regiões onde o fenômeno tem acontecido. Toda a costa oeste da península e ilhas da região estão salpicadas de verde.

O mapa, feito ao longo de seis anos por biólogos da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, identificou 1.679 pontos de neve verde. Ao todo, essas áreas somam 1,9 quilômetro quadrado. Pode parecer pouco, mas toda a vegetação existente na península soma 8,5 quilômetros quadrados.

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Imagem: Reprodução/Nature

O fenômeno pode até parecer divertido e, er, "instagramável". Poderia até ser uma ação de marketing de Natal que destruiu todas as barreiras do bom senso.

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Mas é algo sério. É um sinal claro, pictórico e evidente, didático como um bom infográfico, dos efeitos das mudanças climáticas no continente gelado.

Quanto mais quente aquela região, menos branca e mais verde a neve tenderá a ficar. Isso, por sua vez, desencadeia uma de bola de neve, com o perdão do trocadilho, porque quanto mais verde a área ficar, mais ela vai colaborar para o aquecimento, porque a "neve melancia" reflete menos luz do que a branca. Logo, ela retém mais calor, acelerando o derretimento.

A Antártica detém 70% da água doce do mundo. Se tudo derreter, os níveis dos mares subirão até 60 metros. As algas da neve são um sinal bem nítido de como as coisas estão desandando.

Pode dar tudo errado para nós e para muitas outras espécies, mas a vida, de maneira geral, dará seu jeito, como sempre. As próprias algas da neve, um sinal de alerta para a humanidade, representam uma nova fronteira de biodiversidade na Antártica.

Metade das ocorrências de alga verde estão a apenas 100 metros do mar, e quase dois terços delas ficam a até 5 quilômetros de uma colônia de pinguins. Isso sugere que os excrementos da fauna marinha são uma fonte essencial de fertilizantes, como fosfato e nitrogênio — algo mais que importante em um ambiente que é, para dizer o mínimo, inóspito. As algas seriam fonte de alimento para outras espécies, cumprindo a função de pedra angular de um novo ecossistema na península.

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Imagem: Getty Images/iStockphoto

Que lugar é esse?

O maior foco de algas da neve encontrado fica na Ilha Robert, nas Shetland do Sul. Uma mancha de 145 mil metros quadrados cobria de verde e vermelho essa ilha, que não foi batizada em homenagem a um homem, mas a um navio.

Richard Fildes era um navegador britânico que trabalhava como caçador de focas. No verão de 1822, uma época em que a insana caça a esses animais os levou à beira da extinção na região em apenas três anos, ele estava nas Shetland do Sul. Sua embarcação, chamada Robert, ficou presa no gelo e teve que ser abandonada.

Hoje Fildes encontraria menos gelo para navegar na região. Mas a que custo?

Você pode ver de perto o resultado. Outra ilha das Shetland do Sul, Deception, que também foi assunto no Terra à Vista, recebe turistas para visitar a praia mais insólita do planeta.

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Então, se quiser ver neve verde e praia na Antártica, tem como.


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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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