Ave que não voa é a habitante mais famosa de ilha chamada Inacessível
37º18'S, 12º40'O
Ilha Inacessível
Tristão da Cunha
Santa Helena, Ascensão e Tristão da Cunha (território britânico ultramarino)
Poucos lugares têm um nome tão seco, direto e burocrático, mas que ainda assim fazem cócegas na imaginação: Ilha Inacessível. Como dizer tanto com tão pouco?
Segundo uma explicação para o nome, os primeiros humanos de que se tem notícia a chegarem ali, um grupo de navegadores holandeses, em 1652, anotaram um "inacessível" na carta náutica, a fim de registrar que eles não conseguiram explorar o interior da ilha. Só que não é só o miolo dela que é difícil: chegar à ilha em si é uma missão insana, então o nome pegou.
A Ilha Inacessível é um pedacinho de terra e rocha de 12 quilômetros quadrados, isolado e inóspito, no meio do Oceano Atlântico. Ela pertence ao arquipélago de Tristão da Cunha, que já foi tema aqui do Terra à Vista justamente por ser a ilha habitada mais isolada do mundo (ainda mais nos tempos da pandemia).
Só que Tristão da Cunha — que por sua vez integra o território britânico de Santa Helena, Ascensão e Tristão da Cunha, pelo menos tem um punhado de seres humanos vivendo nela. A Ilha Inacessível é ainda mais distante do resto do mundo.
Isso deixa a história de seu habitante mais famoso ainda mais incrível. Como é que a saracurinha-da-ilha-inacessível, a menor ave não-voadora do planeta, foi parar ali?
Que bicho é esse?
Espécie da mesma família das saracuras e galinhas d'água que habitam nossas margens de rios e áreas pantanosas, a saracurinha-da-ilha-inacessível é endêmica desse fim de mundo. Ou seja, só existe ali, nessa ilhota a 40 quilômetros de Tristão da Cunha - que por sua vez está a 2,4 mil quilômetros da zona habitada mais próxima, Santa Helena, com parcos 4 mil moradores.
A Ilha Inacessível é considerada uma área importante para a conservação de aves. Diversas espécies marinhas migram para lá na época da reprodução.
Pinguim-de-penacho-amarelo-do-norte, piau-preto, albatroz-de-tristão e albatroz-de-nariz-amarelo-do-atlântico são algumas das aves ameaçadas de extinção que têm na ilha um refúgio. A Inacessível pode ser um lugar frio, distante e irrelevante para a humanidade, mas para as aves marinhas ela é uma metrópole pulsante.
Se este mundo fosse das aves, a ilha não se chamaria Inacessível. Porque uma coisa é imaginar como os humanos chegam ali. Outra são esses animais majestosos, que voam (ou nadam) milhares de quilômetros. A capacidade das aves migratórias de transformar a Terra num ovo e viajar por ela todos os anos enquanto a gente sofre em uma esticada no feriadão preso no trânsito é fascinante.
Para um albatroz, a África do Sul é logo ali. Mas e para essa prima da galinha d'água (que, apesar do nome, é uma boa voadora)? Como os ancestrais da saracurinha chegaram e vingaram nessa ilha no meio do nada?
O médico inglês Percy Lowe, em 1928, desenvolveu uma teoria após estudar um espécime enviado a ele por um clérigo de Tristão da Cunha. Lowe concluiu que a saracurinha-da-ilha-inacessível descendia de uma ave que também não voava e que chegou à ilha por meio de uma ponte terrestre.
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Quero receberEra uma explicação meio que padrão para a disseminação das espécies antes que a teoria das placas tectônicas se firmasse, nos anos 1960. Já a hipótese de Lowe, por sua vez, não parou de pé.
Até que, na década passada, o biólogo evolucionista e ornitólogo sueco Martin Stervander analisou o material genético da ave. Em 2019, ele e seus colegas publicaram um artigo que explicava o caso de uma vez.
O estudo concluiu que o parente mais próximo da saracurinha é a pequenina sanã-cinza, que habita campos úmidos, brejos e banhados esparsos no leste da Argentina, no sul do Uruguai e em alguns pontos das costas gaúcha e catarinense. É uma espécie ameaçada - mas o mais relevante, nesse caso, é outra informação.
Tanto a ave sul-americana quanto sua misteriosa prima do meio do Atlântico descendem de uma ancestral que podia, sim, voar. Ou seja, Stervander concluiu que essa antiga espécie não chegou à Ilha Inacessível andando, mas voando.
Depois, a evolução seguiu seu curso. Como aconteceu em outras ilhas onde não havia predadores, essa ave perdeu a habilidade de voar. É que o voo é algo dispendioso, que demanda muita energia e que se mostrou inútil ali.
Hoje, a saracurinha, cujo nome científico é Laterallus rogersi, serpenteia pela vegetação da ilha, banqueteando-se de invertebrados, sementes, minhocas e pequenos frutos. Só que esse paraíso está ameaçado para ela.
Afinal, basta um predador desembarcar na Inacessível que o paraíso vira inferno rapidinho. Segundo uma estimativa citada pelo site "Atlas Obscura", algo entre 440 e 1.580 espécies da família dos ralídeos (saracuras, sanãs, galinhas d'água e afins) foram extintas quando humanos chegaram às ilhas do Pacífico.
Como chegar à Ilha Inacessível
O isolamento ajuda, e o governo de Tristão da Cunha não quer facilitar a introdução de nenhum potencial predador. Para chegar lá, primeiro é preciso decidir de onde partir, Cidade do Cabo ou Ushuaia — sim, porque o arquipélago fica mais ou menos a meio caminho entre a Terra do Fogo e a África do Sul.
A bordo de um barco pesqueiro, uma embarcação científica ou um cargueiro, são pelo menos oito dias de mar aberto, se o clima permitir. Depois, para desembarcar em Tristão da Cunha, são outros quinhentos.
O porto é minúsculo, não há praias nem enseadas bem protegidas que permitam um desembarque tranquilo. É possível esperar dias até que o tempo permita chegar à costa de bote. Por isso, muitos simplesmente ficam a bordo do navio, dispensando a vastíssima oferta de hospedagens que uma ilha de 230 habitantes pode oferecer.
Para chegar à Inacessível, é preciso, teoricamente, ter uma licença do governo local. Navegue mais 45 quilômetros para sudoeste e pronto.
Mas do que você precisa mesmo é de sorte: ela oferece apenas um ponto minimamente viável para desembarque, uma prainha de pedras. O tempo é inclemente, e a janela que permite uma viagem segura é de cerca de uma semana, entre dezembro e janeiro.
Chegando lá, não tem muito o que fazer. O interior da ilha, como os exploradores holandeses perceberam 372 anos atrás, fica protegido por um paredão rochoso. A Inacessível, junto com outra ilha (Gough, ou Gonçalo Alvarez), é patrimônio natural da Unesco, então somente cientistas a trabalho podem explorá-la mais a fundo.
Os únicos moradores da Ilha Inacessível
Em 1871, dois irmãos quiseram que as coisas fossem um pouco diferentes. Gustav e Frederick Stoltenhoff deixaram a Alemanha desgostosos após servirem na Guerra Franco-Prussiana e resolveram recomeçar a vida: foram para Tristão da Cunha.
Não satisfeitos, decidiram se isolar ainda mais. Um morador de Tristão revelou à dupla que no ano anterior a caça às focas na Ilha Inacessível fora altamente rentável. Eles sentiram o cheiro de oportunidade e foram até lá - e ficaram.
Os irmãos decidiram investir no comércio de pele de foca e viver à base de pesca. Só tinha um porém: eles não entendiam nada do assunto e tinham pouca experiência com a natureza selvagem.
Por algum milagre, sobreviveram a dois invernos. Conseguiram matar apenas 19 focas e comiam pouca coisa além de ovos de pinguim. Eles haviam negado seguidas ofertas de resgate, mas no fim cederam e retornaram a Tristão da Cunha.
Desde então, nenhum humano foi louco o suficiente para tentar morar lá.
A Ilha Inacessível é o lar da ave que leva seu nome, e se tudo der certo permanecerá assim.
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