Entre rivais, ilha sob 'guarda compartilhada' muda de país a cada 6 meses
43º20'N, 1º45'O
Ilha dos Faisões
Irun, País Basco, Espanha (até 31/7)
Ela é uma ilhota de rio, um tanto sem graça. Tem uns 200 metros de comprimento por 40 de largura, e está diminuindo com o tempo: a neve derretida dos Pireneus causa uma erosão anual que não foi motivo de preocupação para nenhum governante, apesar de sua relevância histórica.
Isso porque estou falando de um lugar administrado não por um, mas por dois municípios e dois países ao mesmo tempo. Ou melhor, alternadamente.
Durante seis meses, a Ilha dos Faisões é a Isla de los Faisanes, espanhola. Nos outros seis, é a Île des Faisans, francesa. No ano todo, é Kompantzia, no País Basco, região histórica dividida entre os dois países e marcada pelo forte separatismo no século 20.
Que lugar é esse?
Os municípios de Irun e Hondarribia ficam na Espanha, na margem oeste do rio Bidasoa. Enquanto Hondarribia é uma cidade histórica, de frente ao mar da Baía da Biscaia, Irun está um pouco mais para dentro do território, margeando as curvas do rio antes da foz (navegando pelo mapa no fim do texto você tem uma ideia melhor).
A paisagem urbana também difere. Hondarribia tem prédios bascos imponentes e coloridos, já Irun, ao menos próximo ao rio, se limita a torres residenciais pouco inspiradas.
No outro lado do Bidasoa, já na França, fica Hendaye, uma aprazível cidade litorânea popular entre veranistas. Subindo a margem, o charme costeiro dá lugar a uns galpões industriais.
No meio do rio, cercada por essas duas margens com pouco ou nada de interessante, lá está ela, a Ilha dos Faisões. Quase inacessível, serena, coberta com algumas árvores. A presença humana mais emblemática é um monumento em memória a um evento que ocorreu ali no século 17.
Não foi qualquer coisinha à toa.
A ilha sediou o ponto máximo de uma série de conferências em 1659, entre lideranças diplomáticas dos dois países. O nobre Luis Méndez de Haro, conde-duque de Olivares, e o cardeal Jules Mazarin, ministro-chefe da França, assinaram ali o Tratado dos Pireneus.
Foram meses de negociação. Pontes de madeira conectaram os dois países àquele território neutro. Exércitos de ambos os lados acompanhavam as tratativas.
As lideranças chegaram a um acordo, demarcaram novas fronteiras e selaram a paz. Era o fim da guerra que opôs franceses e espanhóis por 24 anos, um conflito que, em sua primeira fase, integrou um dos eventos mais devastadores e importantes da história, a Guerra dos Trinta Anos.
A fim de sacramentar que a rixa eram águas passadas, um casamento real deveria ser realizado. Era a melhor solução. Assim, Maria Teresa da Espanha, filha do rei Filipe 4º, conheceu, em 1690, na Ilhas dos Faisões, seu futuro marido: o rei francês Luís 14.
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Quero receberA ocasião foi eternizada em obras de arte, como uma tapeçaria, que está na embaixada francesa em Madri. Estavam presentes, além do conde-duque e do cardeal que orquestraram o acordo, membros das casas reais e até o mestre Diego Velázquez, principal pintor da corte de Filipe 4º.
Só de ter a presença de um dos maiores gênios das artes plásticas e de um dos monarcas mais famosos da história da Europa, o evento já chama a atenção. Mas, além disso, em termos diplomáticos, o Tratado dos Pireneus foi um bem-sucedido acordo entre duas potências rivais.
Ainda assim, a Ilha dos Faisões é um lugarzinho meio esquecido. De vez em quando funcionários das prefeituras de Irun e Hendaye vão até lá cortar a grama e podar árvores. A polícia tenta controlar um ou outro que inventa de acampar ali, o que é proibido (mas tem inegável apelo, já que é possível chegar andando pelo lado espanhol, a depender do nível da água).
Mas é só isso. A ilha é uma vaga sombra do passado, desaparecendo aos poucos na erosão da terra e da memória.
A fronteira também vive outros tempos. Graças à União Europeia, cruzá-la é tão difícil quanto abrir uma porta destrancada.
Mas, décadas atrás, quando a Espanha era uma empobrecida e fechada ditadura comandada pelo general Francisco Franco, a situação era bem diferente. A fronteira era muito policiada, e havia sentinelas a cada 100 metros na margem do rio, a fim de evitar fugas de opositores do governo.
A administração conjunta, tecnicamente chamada de condomínio, sobreviveu a guerras e à ditadura. Hoje, a ilha é espanhola. Em 1° de agosto, passará à França. Em 1° de fevereiro do ano que vem, voltará à Espanha, e assim por diante.
Não há cerimônias, e quem passa diante dela nem percebe, porque não existe nenhuma bandeira para sinalizar quem está no controle agora. No passado, até houve essa ideia, segundo uma reportagem da BBC.
Mas não foi para frente. Segundo o prefeito espanhol, hastear uma bandeira espanhola ou francesa só afloraria sentimentos nacionalistas locais: os bascos poderiam derrubá-la e trocar por sua própria bandeira.
Melhor manter a ilha como um bem-sucedido acordo de paz. Mesmo que não haja mais faisões, princesas nem diplomatas no local. Só o mato, o silêncio e a lembrança.
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