Ozempic está mudando a cara de cidade nórdica que foi 'berço' do babyliss
55º40'N, 11º07'L
Parque industrial Novo Nordisk
Kalundborg, Zelândia, Dinamarca
Mesmo em um mês trágico no Rio Grande do Sul, em Papua-Nova Guiné e na Palestina, um pequeno acidente conseguiu espaço na imprensa. Na semana passada, uma coluna de fumaça, que podia ser vista a 30 quilômetros de distância, até podia impressionar e nos fazer crer que se tratava de algo trágico. Mas não.
A notícia de um incêndio sem vítimas nem grandes perdas materiais em um prédio de escritórios qualquer, longe de grandes centros, só correu o mundo porque se tratava da fabricante do medicamento mais falado do momento. Para piorar, a estranha coincidência: menos de uma semana antes, outro incêndio atingira um prédio, ainda em construção, da mesma empresa, a Novo Nordisk.
A empresa é, hoje, a grande campeã da economia dinamarquesa. Ela é um fenômeno que faz barulho na indústria farmacêutica e nas redes sociais, graças a esse medicamento para diabetes que ficou famoso entre quem quer perder peso.
É desses remédios que encontram seu cantinho na cultura popular, como Prozac e Viagra conseguiram no passado. Quando as imagens do fogo se espalharam, vi gente fazendo piada com amigos: "Não precisa mais se preocupar, você não vai ficar mais com cara de Ozempic".
Só que o incêndio não atingiu a fábrica, apenas o prédio da empresa em Bagsvaerd, nos arredores de Copenhague. Então, amigos, podem ficar tranquilos que a produção não foi afetada.
Em Bagsvaerd, a presença da Novo Nordisk não tem nem uma fração do impacto que ela vem causando em outra cidade, Kalundborg. É lá que fica a fábrica de Ozempic, e é ela que a empresa está transformando radicalmente.
Que lugar é esse?
Kalundborg é uma cidadezinha de 17 mil habitantes na ponta oeste da Zelândia, a maior ilha da Dinamarca continental e onde mora quase a metade da população do país (Copenhague, aliás, fica do outro lado da ilha).
Para economizar seu tempo porque sei que ficou se perguntando: nada a ver com a Nova Zelândia. O país da Oceania deve seu nome a outra Zelândia, província no extremo oeste dos Países Baixos, porque o primeiro europeu a avistá-la oficialmente foi um holandês, chamado Abel Tasman, em 1642.
Cerca de um quarto de toda a população de Kalundborg trabalha na fábrica da Novo Nordisk instalada há décadas na cidade. Com o sucesso assombroso do Ozempic e do Wegovy, um medicamento para obesidade, a empresa deve criar mais 1.250 vagas, levando o total a 7.750 funcionários.
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Quero receberIsso faz parte de um plano de investimentos na ordem de 8 bilhões de euros. O dinheiro que desemboca na cidade pode ser visto na ampliação da rodovia, nos novos cursos universitários ligados a biotecnologia e no aumento de comércio e serviços. A estação de trem será reformada, e um novo parque à beira-mar vem aí. É um ciclo de bonanças sem precedentes nas últimas décadas.
Quase todo o mercado da Novo Nordisk é internacional. Os Estados Unidos, um dos países com a maior taxa de obesidade do mundo, respondem por mais da metade do montante. Mas os benefícios do crescimento podem ser vistos internamente.
A Dinamarca, terra da Maersk, da Carlsberg e da Lego, é hoje, mais que nunca, a terra da Novo Nordisk. Não fosse ela, o PIB do país não teria crescido 2,1% no último ano, uma das maiores taxas da Europa.
Ela é a maior pagadora de impostos da Dinamarca. Desde o ano passado, é a empresa mais valiosa da Europa.
Mas e se essa fase esplendorosa esfriar ou acabar de vez? Caso a taxa de crescimento das vendas e da produção da Novo Nordisk caia, toda a economia dinamarquesa deixaria de colher os frutos, disse Jens Nærvig Pedersen, analista do Danske Bank, ao site "Politico".
Para alguns especialistas, essa bênção pode acabar sendo uma maldição, caso a economia dinamarquesa fique muito dependente da situação da Nova Nordisk. Seria um caso semelhante ao da Nokia, que era a galinha dos celulares de ouro da Finlândia, mas ficou para trás quando o iPhone chegou e revolucionou o mercado. Toda a economia finlandesa sentiu o baque com o fracasso da Nokia.
Pedersen afirma que uma eventual decadência da Novo Nordisk teria impacto negativo visível no PIB da Dinamarca, no desemprego e nas taxas de juros. Por outro lado, uma ascensão ainda maior pode também não ser boa. Segundo o analista, a coroa dinamarquesa ficaria valiosa demais, tornando as exportações do país menos competitivas, o que prejudicaria o crescimento de outras empresas.
Stephanie Lose, a ministra da economia, não vê tanto perigo. "O setor farmacêutico não está tão interligado com a economia dinamarquesa assim", declarou. A força de trabalho da Novo Nordisk representa apenas 1% do país, mas, ainda assim, de cada cinco empregos criados no ano passado em toda a Dinamarca, um foi na Novo Nordisk.
História antiga
Hoje, ninguém parece ligar muito para essas perspectivas, já que a economia em Kalundborg vai muito bem. Mas a própria cidade tem experiências do passado em que se apoiar para não se deslumbrar à toa.
Nos anos 1960, Kalundborg não era a terra dos remédios emagrecedores, mas do babyliss. Uma pequena empresa local, Carmen Curlers, virou sensação ao introduzir no mercado esses modeladores de cabelo. Donas de casa americanas amaram, e a empresa acabou vendida para um grupo dos Estados Unidos. Então, o produto saiu de moda, milhares foram demitidos e a fábrica fechou as portas em 1990.
No começo do século 20, um estaleiro dominava a economia da cidade. Mas então veio a Grande Depressão e afundou tudo.
Na segunda metade do século 17, tal qual hoje, o dinheiro vinha do exterior. Os negócios com outros países europeus prosperavam, e no século 18 a cidade atraía grandes comerciantes de Copenhague. Mas as exportações de grãos para a Inglaterra despencaram, e os empresários migraram para outros lugares. Ela nunca mais teve o mesmo prestígio.
Kalundborg é, há séculos, uma cidade de comércio e indústria. O fenômeno Ozempic pode dar a ela seu melhor ciclo econômico e superar os dias de glória de 300 anos atrás. Se a bonança for passageira, o que não falta é aula de história para aprender a se reerguer.
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