Descoberta de ossadas traz à tona o tenso passado das 'Ilhas Canibais'
18º07'S, 177º32'L
Ruínas do Forte Tavuni
Sigatoka, Nadroga e Navosa, Fiji
Por causa da distância e do acesso limitado, uma viagem aos países insulares do Pacífico dificilmente é barata. Mas o turismo nesses países não é feito apenas de lua de mel de famosos ou bangalôs ultrachiques, por mais que os algoritmos e influenciadores caçadores de likes tentem dizer que sim.
Fiji, por exemplo, tem um jeitão muito mais mochileiro. É um país repleto de cachoeiras, templos hindus, mercados coloridos, trilhas exuberantes, dunas e uma sucessão de ilhas uma-mais-bonita-que-a-outra.
Recentemente, na ilha de Vitu Levu, a maior do arquipélago, aonde turistas vão mergulhar com snorkel, os habitantes locais mergulharam no próprio solo e fizeram uma descoberta insólita. Uma cova coletiva.
Os restos humanos que vieram à tona naquele 29 de fevereiro trouxeram consigo uma dúvida. Eram vítimas dos rituais de canibalismo que fizeram a fama de Fiji em séculos passados no Ocidente? Ou eram atingidos pela maior epidemia de sarampo dos tempos modernos, que estraçalhou o país no século 19?
Que país é esse?
Fiji é um arquipélago de mais de 300 ilhas, sendo 100 habitadas, no centro-sul da Oceania. Há cerca de 3 mil anos, os lapitas iniciaram a colonização do arquipélago, seguidos, um milênio mais tarde, por outros povos da Melanésia.
O holandês Abel Tasman, em sua viagem à procura da Terra Australis, o grande continente do sul, foi o primeiro europeu de que se tem notícia a pisar em Fiji, em 1643. Mas foi o inglês William Bligh - capitão de um navio, o Bounty, cujo motim entrou para a história - o primeiro a mapear as ilhas.
Assim, Fiji entrou na esfera de influência britânica, e nos séculos seguintes mercadores se tornaram frequentes no arquipélago, de olho na caça de baleias e no comércio de pepinos-do-mar, produto com boa demanda na China. Agricultores ingleses e americanos chegaram para plantar algodão nas terras férteis das ilhas, enquanto missionários buscavam novas frentes de evangelização.
Nessa época, Fiji era chamado de "Ilhas Canibais". Os europeus reforçaram e exageraram nas histórias que contavam, a fim de evidenciar a pecha de povo atrasado, que necessitava de uma intervenção colonial catequizadora urgente, explica Tracey Banivanua-Mar, pesquisadora especializada nas histórias interconectadas dos indígenas do Pacífico, na publicação científica "Comparative Studies in Society and History", da Universidade de Cambridge (Reino Unido).
Causos sobre um homem que teria comido, sozinho, 872 pessoas e de pilhas de corpos frescos servidos em cerimônias comuns, como construção de casas e barcos, se espalharam. Mas a verdade é que o canibalismo em Fiji era algo muito mais ritualístico e cerimonioso.
Sim, os vitoriosos em batalhas podiam comer os derrotados, acreditando, assim, adquirir seus poderes. Mas não é que eles mantivessem bufês de carne humana abertos todos os dias.
Newsletter
BARES E RESTAURANTES
Toda quinta, receba sugestões de lugares para comer e beber bem em São Paulo e dicas das melhores comidinhas, de cafés a padarias.
Quero receberNewsletter
OLHAR APURADO
Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receberIngleses e americanos seguiram atiçando rixas locais e impondo sua superioridade tecnológica, às vezes de maneiras bárbaras. Em 1808, um britânico chamado Charlie Savage, a bordo de uma canoa, praticou tiro ao alvo em um vilarejo com sua pistola. Tingiu o rio de sangue e acumulou tantas vítimas que os sobreviventes improvisaram uma muralha com os corpos*.
Em 1867, o caldeirão virou. Thomas Baker, um missionário britânico, ao visitar uma aldeia, presenteou seu chefe com um pente. Achava que isso abriria as portas para uma possível conversão ao cristianismo.
Só que o homem não se interessou, então Baker quis pegar o pente de volta. Ao fazê-lo, acabou tocando na cabeça do chefe. Era um tabu tão grave que custou sua vida.
Baker e sete de seus assistentes, fijianos convertidos, foram desmembrados, queimados e devidamente comidos. O desfecho, somado a rebeliões indígenas que mataram dois brancos, disparou uma onda de violência nas ilhas.
Eventualmente, as aldeias das terras altas e montanhosas se uniram contra as da costa, que tinham os ingleses como aliados. Os sete povos nativos acabaram formando uma confederação para ter algum governo centralizado. Em 1871, com o aval britânico, um reino foi oficializado em Fiji, e Cakobau, um dos grandes chefes, virou rei.
Colonização britânica
Era uma organização política feita para agradar aos colonos. Cakobau sofria com problemas econômicos e de legitimidade, e apenas três anos depois o reino chegou ao fim.
Cakobau e outros chefes deliberaram, e por fim aceitaram ceder o controle do arquipélago ao Império Britânico, em 1874. Para celebrar a anexação, Cakobau viajou até a principal colônia britânica na Oceania, a Austrália.
Só que havia um surto de sarampo em Sydney. Cakobau e seus filhos voltaram infectados para casa.
A doença era algo completamente novo em Fiji, então os ilhéus não tinham nenhuma resistência ao vírus causador. Os europeus já tinham contato com o sarampo havia pelo menos centenas de anos, e os ingleses sabiam o que acontecia quando uma população sem anticorpos era exposta a ele.
Ainda assim, o novo governo não impôs uma quarentena aos recém-chegados. O vírus se espalhou rapidamente, e cerca de 40 mil fijianos morreram na epidemia. Isso correspondia a um em cada três habitantes. Foi talvez a pior epidemia de sarampo de que se tem notícia, em todo o mundo.
A violência interna também não estava resolvida. Em 1876, tropas do governo reforçaram a luta contra o povo kai colo e seus aliados. O Forte de Tavuni foi destruído.
Os rebeldes fugiram para as montanhas, e a natureza fez o serviço. O forte, abandonado, acabou engolido pela mata, e só nos anos 1980 arqueólogos descobriram fundações de casas, muralhas e relíquias. O governo de Fiji, independente desde 1970, limpou a área para a exploração turística, e hoje o forte é um dos principais pontos turísticos da cidade de Sigatoka.
Foi lá que, ao cavar a sepultura de um chefe indígena morto em fevereiro, os habitantes descobriram grandes quantidades de ossos humanos enterrados. Por ter sido um centro tradicionalista de rebeldes contra Cakobau e os britânicos, muitos acreditavam que a cova marcava um ritual de canibalismo.
Mas um arqueólogo do Museu de Fiji e outro, de uma universidade australiana, pensam que é mais provável que sejam vítimas da terrível epidemia de 1875. Amostras dos restos foram enviadas para análise em laboratório, segundo a "National Geographic".
O resultado jogará luz a um episódio importante e traumático da história do país, além de dar mais importância às ruínas do Forte de Tavuni. O canibalismo não é mais praticado em Fiji, mas o sarampo, infelizmente, ainda é uma ameaça.
Em 2019, um pequeno surto ameaçou países da Oceania. A resposta do governo foi a única possível: aumentar as campanhas de vacinação, o que é cada vez mais importante em tempos de negacionismo científico e canalhice política galopantes. Em 2022, Fiji atingiu 100% de cobertura para a primeira dose.
*A justiça foi feita e Charlie Savage foi trucidado em uma escaramuça com os fijianos, em 1813.
Índice de posts da coluna Terra à Vista (explore o mapa):
Deixe seu comentário