'Precisam de música': o incrível retiro dos artistas clássicos na Itália
45º28'N, 9º09'L
Casa Verdi
Milão, Lombardia, Itália
Imagine um artista bastante popular que decide, no fim da vida, investir no bem-estar e na dignidade de colegas aposentados bem menos afortunados. Em 1888, já consagrado e idolatrado, Giuseppe Verdi, um dos maiores nomes da história da música, ordenou a construção de um hospital na cidade onde vivia, Villanova sull'Arda, na província de Piacenza.
Mas o texto de hoje não é sobre esse hospital. No ano seguinte, Verdi deu mais um passo em sua carreira de benfeitorias.
Ele decidiu tirar do papel a ideia de erguer um retiro exclusivo para profissionais da música aposentados. Comprou um terreno em Milão, mas as obras levaram ainda alguns anos para começar.
A "Casa di Riposo per Musicisti" ficou pronta em 1899, mas era desejo de Verdi que ela entrasse em operação somente após sua morte - o que não demorou muito. Em janeiro de 1901, aos 87 anos, o compositor italiano que por décadas foi o astro predominante do mundo da ópera no país, morreu.
Em seu funeral, o lendário maestro Arturo Toscanini reuniu uma vasta seleção de músicos, representando diversas regiões da Itália, para se apresentarem sob sua batuta. O país entrou em luto oficial, e milhares de milhares de fãs prestaram suas homenagens em uma enlutada procissão acompanhada por "Va, Pensiero", um coro da ópera "Nabucco" (1842), uma das mais famosas de Verdi.
"É impossível superestimar a popularidade e influência de Verdi durante e depois de sua vida", resume o site da Deutsche Grammophon, gravadora especializada em música clássica, fundada em 1898. "Nabucco", "Rigoletto", "Il Trovatore", "La Traviata", "Aida", "Otello", "Falstaff". São muitas obras, relevantes até hoje.
Podemos até não saber qual é qual, se aquela ária, dueto, "brindisi" ou abertura pertence a essa ou àquela ópera. Mas basta escutar um trecho e você identificará. Na década passada, alguns vídeos viralizaram ao mostrar essas peças musicais brotando ao vivo em locais inusitados, como um supermercado.
Se quiser uma sucessão de "ei, esta eu conheço!", o YouTube está cheio de listas.
Tudo isso para endossar que Verdi era rico, famoso e influente. Tinha os meios e a vontade para investir no trabalho que, em suas palavras, lhe deu mais prazer: "A casa que construí em Milão para abrigar cantores idosos que não foram favorecidos pela sorte, ou que quando jovens não tiveram a virtude de poupar dinheiro. Pobres e queridas companhias da minha vida!"
Que lugar é esse?
Ao longo de mais de cem anos, o residencial hospedou nomes famosos do meio, segundo o site da rádio britânica Classic FM. É o caso do casal Gemma Bosini e Mariano Stabile. Ela era soprano e ele, barítono. Ambos ficaram reconhecidos, entre os anos 1910 e 1950, por seus papéis na última ópera de Verdi, "Falstaff".
A Casa Verdi segue em funcionamento. Essa suntuosa mansão neogótica, com influência veneziana, abriga 60 músicos.
Apesar da evolução de mecanismos como previdência social e aposentadoria nos últimos 120 anos, ela ainda tem bastante apelo. Todos os anos, o retiro recebe montes de candidaturas de maestros, músicos, cantores e compositores, além de professores de música, que desejam passar seus últimos anos lá.
Newsletter
BARES E RESTAURANTES
Toda quinta, receba sugestões de lugares para comer e beber bem em São Paulo e dicas das melhores comidinhas, de cafés a padarias.
Quero receberNewsletter
OLHAR APURADO
Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receberA concorrência é grande, e o conselho deve decidir quem se encaixa melhor na proposta do local, que é bancado pelos investimentos feitos com os direitos autorais das óperas de Verdi - os moradores pagam uma taxa que varia de acordo com sua situação financeira.
Eles têm quarto e acompanhamento médico, além de serviços de cuidados pessoais, como manicure e cabeleireiro. Mas o barato mesmo são as salas de música, 15 pianos, harpas e outros instrumentos à disposição. E o mais importante: têm a companhia de outras pessoas como eles, que dedicaram a vida à arte. Alguns, inclusive, são antigos colegas de trabalho.
"Em primeiro lugar, essas pessoas precisam de música", disse o presidente da instituição ao jornal "The New York Times" em 2018. "Em segundo, não querem ser tratados como hóspedes comuns, mas como estrelas. Temos 60 músicos idosos e 60 estrelas."
Os residentes também assistem a concertos regulares. O Teatro alla Scala envia músicos diversas vezes ao ano. Fora que a casa de espetáculos, uma das mais importantes do mundo, fica a apenas quatro estações de metrô. É um convite para que muitos moradores da Casa Verdi peguem a linha 1 e se dirijam até lá para conferir a programação e relembrar os tempos em que eram eles que estavam naquele palco.
A soprano Luisa Mandelli era uma que ia ao Scala todas as noites. Mas "ficou preguiçosa" e passou a ir somente quatro vezes por semana.
Novas companhias (e uma pizza, talvez?)
Em 1998, a Casa Verdi decidiu abrir alguns quartos para um novo tipo de público: jovens músicos. Teve quem ficou receoso, mas a experiência se mostrou um sucesso.
O convívio propiciou aos mais novos um tesouro difícil de se conseguir em outro lugar, escutar e aprender com pessoas muito mais experientes, que passaram décadas no mesmo ramo em que eles estão dando os primeiros passos. Para os mais velhos, o sopro de juventude traz a alegria de testemunhar que novas gerações se interessam e queiram se aventurar profissionalmente na música de concerto.
A importância da Casa Verdi foi reconhecida em 2017, quando o diretor Damiano Michieletto trouxe sua versão de "Falstaff" para o Scala (a mesma casa onde a ópera estreou, mais de 120 anos antes). Michieletto idealizou uma réplica do salão da Casa Verdi para a produção, criando assim "um cenário perfeito para a história de um velho que não aceita o próprio declínio físico e anseia pela volta de dias passados", segundo a Classic FM.
A mansão, ricamente decorada, com maçanetas em forma de lira e paredes e tetos ornamentados, tem ainda a capela onde estão sepultados Verdi e sua esposa, Giuseppina Strepponi, uma famosa soprano no século 19. Apesar de ser uma casa de repouso, é possível visitar o local, e de graça. É só agendar.
De quebra, se estiver no clima, na mesma praça onde fica a Casa Verdi, você pode testemunhar um experimento recente italiano que, diferentemente da ópera, teve vida curta e desprezível. É lá que ficava uma das unidades da Domino's.
A rede americana de pizzarias chegou à Itália em 2015 disposta a quebrar a banca, a relutância e a incredulidade de todo mundo que reagia da mesma maneira. Como assim, Domino's? NA ITÁLIA?
Começando por Milão, a pretensão era chegar a 880 restaurantes em 2030. Mas a operadora local que administrava as franquias alegou que restrições governamentais, a concorrência com outros serviços de entrega de comida e a pandemia encerraram prematuramente o engordurado sonho.
A empresa não chegou a ter nem 30 lojas no país, em 2022 encerrou as atividades por lá. O site Food & Wine resumiu: "Domino's fecha seus restaurantes na Itália, surpreendendo zero pessoas".
Já diziam os sábios, né? Uma vez em Roma (ou em Milão), é mais garantido ir de ópera do que de pizza de abacaxi, por mais gostosa que ela possa ser.
Índice de posts da coluna Terra à Vista (explore o mapa):
Deixe seu comentário