Cães-heróis que quase sumiram podem domar tempestades de areia da Ásia
47º46'N, 105º51'L
Mongolian Bankhar Dog Project
Parque Nacional Hustai, Töv, Mongólia
As tempestades de areia na China nos últimos anos estão entre os fenômenos mais impressionantes do caos climático que vivemos. Em 2021, dias viraram noites e a poluição atmosférica ficou 20 vezes pior do que o limite recomendado em algumas cidades. Um mosteiro budista quase foi soterrado na Mongólia.
No ano passado, 18 províncias da China, além de regiões do Japão e da Coreia do Sul, foram atingidas. As tempestades são resultado de um combo que envolve ventos de norte a sul, pouca chuva e aumento de temperaturas.
O principal motivo é o crescimento, ao longo de décadas, da própria fonte dessas montanhas de areia que atormentaram Xangai, Pequim e outras cidades: o Deserto de Gobi. A "muralha verde" que a China começou a erguer nos anos 1970 parece não dar mais conta, porque a desertificação em sua vizinha do norte chegou a níveis alarmantes (falei sobre o assunto neste post aqui).
Um levantamento de 2015 apontou que 77,8% das terras da Mongólia estão degradadas. Isso é resultado de uma conjunção de fatores acumulados ao longo de décadas, segundo o jornal "China Daily".
O aumento da população e o crescimento de uma economia que hoje é regida pela mineração, além das mudanças climáticas, estão entre eles. Outro motivo, é claro, é o uso inapropriado da terra - e isso passa pelo desequilíbrio ecológico causado por rebanhos cada vez maiores.
Um elemento importante que pode recuperar esse equilíbrio é um cachorro. Não um único cão.
Esta não é uma história sobre um desses heroicos bichos que salvam pessoas soterradas, confortam os doentes ou lutam nas guerras dos homens. É sobre uma raça inteira.
Que cachorro é esse?
O bankhar é um cão ancestral, que há milênios acompanha os pastores nômades das estepes mongóis. É um grandalhão que pode chegar a 55 quilos e a 83 centímetros de altura na cernelha (o ponto logo atrás da base do pescoço).
Trata-se de um cão guardião de gado, que seria ancestral de todas as dezenas de raças especializadas nessa função. Seu parente mais próximo é o imponente mastim tibetano.
Com um pelo grosso e longo, o bankhar tem ainda patas relativamente pequenas e não consome tantas calorias para um cão do seu tamanho. São características que o tornam apto para encarar o inverno do Gobi, num dos países frios do planeta.
Esse cachorro é um protetor implacável de rebanhos. Passa o tempo todo com os animais e, não bastasse sua presença intimidante, tem um arsenal que afugenta predadores: se os feromônios da urina marcam, os latidos escancaram o território. O bankhar late muito, e late alto - um som reconfortante para os pastores dormirem em segurança.
As pessoas reconhecem seu valor. Por mais que seja um cão de trabalho há milênios, o bankhar tem alguns privilégios que outras raças só foram conhecer em tempos recentes, quando os bichos de estimação viraram a multibilionária indústria pet.
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Quero receberOs cachorros recebem nomes próprios e são considerados membros da família, algo que nenhum outro animal naquele meio tem. Até aí, qualquer cãozinho com um dono, tutor, pai ou mãe humanos (escolha o termo que preferir) tem nome, você diria.
Mas um bankhar, quando morre, é enterrado no alto de uma montanha, para ficar mais perto do céu e para que ninguém ande sobre seus restos. As pessoas creem que podem reencarnar nesses cachorros e vice-versa.
Por muito tempo, esse cachorrão cumpriu o papel de proteger ovelhas, cabras, cavalos, camelos e iaques contra leopardos-das-neves, lobos, ursos-pardos, águias e raposas. Isso até o século 20.
Comunismo, expurgos e coletivização
Os chineses dominaram o território mongol do século 17 até 1911, quando a então Mongólia Exterior declarou independência, com a ajuda dos russos. O reconhecimento ao apoio veio em 1924, quando a Mongólia se tornou o segundo país a adotar o socialismo no mundo.
O governo reproduziu algumas das estratégias catastróficas da União Soviética, como os expurgos, que mataram milhares de pessoas, e a coletivização de terras. Campanhas por um modo de vida sedentário e o crescimento da industrialização ameaçaram o estilo de vida nômade, e toda a cultura que o envolvia.
Não havia mais espaço para o bankhar e, para piorar, o desprezo generalizado dos regimes socialistas por cachorros (que ameaçou uma porção de raças antigas, importantes e adoradas anteriormente na Rússia e na China) fez com que o cão mongol se tornasse objeto de desejo na Moscou dos anos 1930 - na forma de casaco de pele.
Outra ameaça foi o cruzamento com cães diferentes, o que diluiu as características do bankhar. As obras de uma extensão da Ferrovia Transiberiana, na década de 1940, trouxeram uma leva de pastores alemães. O material genético milenar do bankhar quase se perdeu, segundo a revista "Scientific American".
Nos anos 1990, o socialismo caiu e o país adotou a economia de mercado. Em meio a todos os perrengues que essas nações enfrentaram ao ingressar no capitalismo, as famílias nômades aos poucos retomaram antigas tradições.
Mas faltava uma parte importante, e isso fez toda a diferença.
No mato (e no deserto) sem cachorro
Sem a presença constante dos bankhars, os pastores entraram num ciclo destrutivo para sua subsistência (e para o meio ambiente). A primeira perda era mais que óbvia.
A ausência dos guardiães das estepes encorajou predadores. Lobos e outros animais faziam a festa em rebanhos indefesos.
Os humanos precisavam reagir. Faziam isso recorrendo a armadilhas, venenos e armas. Também tinham que aumentar as cabeças, a fim de compensar as perdas de animais.
O aumento acelerado dos rebanhos desgasta o solo. Junte a isso a maior frequência de invernos rigorosos e de eventos extremos e o resultado é o aumento da desertificação.
O socialismo não conseguiu matar a vida nômade, mas essa nova conjuntura poderia. Os pastores correm o risco de perder essa luta e ainda podem arrastar para o desaparecimento algumas espécies ameaçadas.
Armadilhas, iluminação noturna, espantalhos e coisas do tipo não inibem os lobos, que em uma noite rentável podem arrancar parte considerável dos ganhos anuais de uma família. Então muitos lobos acabam mortos nos conflitos com humanos.
Outro problema é que a região tem espécies em situação delicada. Nenhuma pessoa decente fica feliz em precisar matar um leopardo-das-neves, um felino ameaçado de extinção.
Para reverter o cenário, surgiu em 2014 o Mongolian Bankhar Dog Project (MBDP). Seu objetivo é proteger a raça (e seu material genético que a torna especial naquele contexto), promover a reinserção do cachorro no nomadismo e, assim, tentar reequilibrar as práticas ancestrais.
A volta do bankhar às estepes significa menos fartura para os predadores, mas, o mais importante, menos ameaças a eles. Segundo a ONG, cães guardiães de rebanhos reduzem em pelo menos 80% as perdas de animais, o que desestimula o uso de armas e outros artifícios letais.
Os lobos, leopardos e outros caçadores acabam se voltando a presas selvagens, o que também colabora com o equilíbrio ecológico. Quanto aos humanos, sem precisar gastar em munição e armadilhas, podem investir em melhorias no trabalho.
Além disso, não precisam adquirir mais animais para repor rebanhos. Isso colabora com a redução do pastoreio em excesso, uma das causas de desertificação.
O MBDP é formado por um time multidisciplinar e multiétnico. Seus nove cães têm acompanhamento científico para o estudo da raça, que é relativamente pouco conhecida.
O bankhar não é reconhecido por nenhuma das principais entidades mundiais de cinologia, o estudo da criação e desenvolvimento das características morfológicas, físicas e mentais das raças caninas. Pegue qualquer enciclopédia que alegue ter todos os cães do mundo e veja que o bankhar, quando muito, é só uma nota de rodapé.
Mas o objetivo principal é a reintrodução do bicho em seu lugar de excelência. Todos os anos, a ONG distribui cerca de 15 filhotes a famílias pastoras.
São passos pequenos, mas promissores, contra a desertificação. Um ditado local diz que algo estranho está acontecendo quando os cachorros não estão latindo.
Por mais importante que eles sempre tenham sido, será que dava para imaginar que sua ausência teria tanto impacto? O latido do bankhar na estepe mongol protege Pequim, a mais de mil quilômetros de distância.
Mais informações no site.
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