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Reportagem

No país mais católico do mundo, Cristo Redentor foi presente de muçulmanos

8º31'S, 125º36'L
Estátua do Cristo Rei
Díli, Díli, Timor-Leste

A gente sabe que existem estátuas do Cristo Redentor de monte por aí. A gaúcha Encantado tem uma maior que o ícone carioca. Tem Cristo Redentor na Bolívia, Espanha, Polônia e El Salvador. Tem na Itália, Vietnã, Peru e Camboriú. Tem na Índia, Eslováquia, Avaré e Taubaté. Tem em Miami e tem em Havana e também em Cubatão e Santa Filomena do Maranhão.

Há 40 anos, a Faculdade de Belas Artes de São Paulo fez um levantamento que indicou que existiam, à época, 118 estátuas do tipo no mundo. Um punhado das que citei acima é mais recente que isso, então podemos deduzir que o número é ainda maior.

Mas só um país, católico e cujo idioma oficial é o português, tem uma estátua de Cristo pairando sobre a praia, num lindo visual que é destino turístico e, ao mesmo tempo, símbolo nacional de independência e de resistência.

Esqueça os trocentos monumentos do tipo no Brasil.

Estou falando do Cristo Rei de Díli, localizado a 16,3 mil quilômetros do Corcovado.

Que país é esse?

Dili, Timor Leste
Dili, Timor Leste Imagem: Getty Images/iStockphoto

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Timor-Leste é uma jovem e pequenina república no Sudeste Asiático, cuja área é bem menor que a do menor dos estados brasileiros, Sergipe. Seus 14.954 quilômetros quadrados se concentram, como o nome do país diz, na porção leste da Ilha do Timor.

Fala-se nossa língua lá porque o Timor entrou na rota de influência do Império Português em 1520, quando navegadores lusos estabeleceram entrepostos comerciais na ilha. Desde bem antes, ela atraía navios árabes e chineses. E, depois, chamou a atenção de outros europeus.

Os holandeses dominaram o oeste do Timor e a maior parte das Pequenas Ilhas da Sunda, arquipélago do qual o Timor faz parte. Também conquistaram os outros conjuntos de ilhas que formam o grande Arquipélago Malaio. Essa grande colônia, as Índias Orientais Holandesas, daria origem à moderna Indonésia.

Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, o expansionista Império Japonês dominou a região, mas a derrota impediu que o cenário se prolongasse por muito tempo. Nacionalistas declararam independência em 1945, e quatro anos depois os Países Baixos a reconheceram, encerrando três séculos de domínio europeu na Indonésia.

Enquanto a porção ocidental do Timor fazia parte do novo país, a oriental ainda era possessão portuguesa. Até que, em 1974, com a Revolução dos Cravos, que encerrou a ditadura em Portugal e abriu caminho para a independência de suas antigas colônias, o Timor-Leste aproveitou o embalo e se libertou, em 1975.

Não durou nada. Em questão de dez dias, o general Suharto, que comandava a Indonésia desde 1968, ordenou a invasão do Timor-Leste. Em 1976, o pequeno país estava oficialmente anexado.

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A resistência armada enfrentou uma repressão brutal, e cerca de 200 mil timorenses foram mortos. Suharto é tido como um dos grandes carniceiros do século 20. Nos anos 1960, em seus primeiros anos no poder, liderou expurgos contra comunistas, sindicalistas, jornalistas e estudantes, ou até famílias e vilas inteiras, quando encontrava resistência. Essa fúria antissocialismo, que contou com muito apoio da CIA, matou 400 mil pessoas em seu próprio país.

A estátua do Cristo Rei

Estátua de Cristo em Timor-Leste
Estátua de Cristo em Timor-Leste Imagem: Getty Images/iStockphoto

Nos anos 1990, para "celebrar a incorporação" do Timor-Leste à Indonésia, o então governador local propôs a construção de um monumento em homenagem ao povo timorense. Aqui reside uma grande diferença entre as duas nações.

A Indonésia é o mais extenso arquipélago do planeta e o quarto país mais populoso do mundo. Seus 275 milhões de habitantes compõem uma enorme diversidade humana, composta por centenas de grupos étnicos que falam mais de 500 idiomas e dialetos.

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Mas o grosso dessa população, 87% dela, é muçulmano. A Indonésia é o país com mais seguidores do islamismo do mundo.

O Timor-Leste, por sua vez, com 1,3 milhão de habitantes, é quase inteiramente cristão: 98% católico, 1% protestante. Só o Vaticano tem uma proporção maior de católicos, mas o Vaticano é um micropaís criado para ser a sede da Igreja, então nem conta. Nenhum país "de verdade" é tão católico quanto o Timor-Leste.

Essa herança da colonização portuguesa prevaleceu como em nenhuma outra ex-colônia europeia na Ásia. Assim, o governo indonésio achou que tudo bem presentear sua 27ª província com um monumento de 27 metros de altura em honra a Jesus.

Suharto aprovou a ideia. Apesar de ter crescido em um ambiente muçulmano, ele não era um fiel fervoroso, e por muito tempo combateu o fundamentalismo islâmco indonésio. Sua ditadura era secular e militar, não religiosa.

Então, em 1996, no aniversário de 20 anos da brutal invasão, o Timor-Leste ganhou a estátua de Jesus sobre um globo terrestre. O monumento foi instalado no alto de um morro, no Cabo Fatucama, na capital, Díli.

A construção ficaria sob responsabilidade da Garuda, a companhia aérea indonésia. Mas o projeto se mostrou mais caro que o previsto, então empresários e a sociedade civil timorense como um todo tiveram que abrir a carteira.

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As obras levaram quase um ano. As peças de cobre, de até 200 kg cada, foram erguidas até o topo do morro, de cerca de 100 metros de altura, por meio de andaimes de bambu, uma tradição da engenharia asiática.

Estátua de Cristo em Timor-Leste
Estátua de Cristo em Timor-Leste Imagem: Getty Images

As pessoas no Timor-Leste não estavam muito contentes. O líder da oposição, Xanana Gusmão, que cumpria pena em Jacarta, condenado à prisão perpétua, chamou o ato de propaganda do governo para iludir seu próprio povo e a comunidade internacional.

Em 15 de outubro de 1996, o próprio Suharto esteve presente à inauguração do monumento. Ele só não esperava que seria constrangido por uma certa premiação em Oslo.

Apenas três dias antes, o Prêmio Nobel da Paz daquele ano foi concedido ao político José Ramos-Horta e ao bispo Carlos Belo, líderes em prol de uma solução pacífica para os conflitos no Timor-Leste, que ainda estavam se desenrolando. O próprio Belo estava na inauguração, ao lado de Suharto.

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Mas o bispo não era favorável ao monumento quando ele fora anunciado. "Qual o sentido de construir uma estátua para Jesus se as pessoas não serão tratadas de acordo com o Evangelho?", questionou, segundo o historiador Geoffrey C. Gunn, especialista em Sudeste Asiático, no livro "Timor Loro Sae: 500 Anos", sobre a história da ilha. "Seria melhor tratar da situação do povo em vez de erguer estátuas", criticou Belo.

Apropriação devida

Em 1998, Suharto chegou ao fim da linha. Um combo sinistro de crise financeira no Sudeste Asiático, violentos protestos, repressão policial ainda mais violenta e pressão dos Estados Unidos (que durante a Guerra Fria, convenientemente, fecharam os olhos para as atrocidades cometidas no país) encerrou os mais de 30 anos de ditadura na Indonésia.

Mais uma vez, o Timor-Leste via uma fresta para tentar a independência. Um referendo realizado no ano seguinte mostrou que 78,5% dos timorenses queriam a liberdade. Militares indonésios comandaram novos massacres, até que tropas da ONU controlaram a situação.

Em 2002, a independência veio. Libertado da cadeia, Xanana Gusmão se tornou o primeiro presidente do país.

O monumento não foi destruído nem negligenciado. Poderia ter sido, já que foi erguido em um gesto político visto como uma provocação cínica e colonialista.

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Em vez disso, o Timor-Leste se apropriou dele e passou a tratá-lo como um símbolo de Díli, um cartão-postal do país e um orgulho nacional, não importava a sua origem controversa. Com uma bela vista do Mar do Timor, descortinada para todos os que vencerem os 570 degraus para subir o morro, seria uma pena se o monumento não fosse tratado como tal.

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