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Reportagem

'Recado' do terror otomano, torre de crânios é ponto turístico na Sérvia

43º18'N, 21º55'L
Torre de Crânios
Nis, Nisava, Sérvia

Difícil pensar em algo tão poderoso para enaltecer a maldade e a engenhosidade humanas do que fazer arquitetura e paisagismo com restos mortais. Fora que passa uma mensagem cristalina de "não se meta conosco".

O Império Otomano era uma dessas grandes forças do passado que usavam tal estratégia. É o que diz Christine Quigley no livro "Skulls and Skeletons: Human Bones Collection and Accumulation" ("Crânios e esqueletos: coleções e acúmulos de ossos humanos", sem edição brasileira).

Mas não foi num passado tão remoto assim. Há um exemplo de apenas 215 anos atrás, quando o império já enfrentava sua lenta decadência, que culminaria na derrota na Primeira Guerra Mundial.

Que lugar é esse?

Skull Tower
Skull Tower Imagem: Getty Images

A Sérvia caiu sob domínio de um ainda jovem e expansionista Império Otomano no fim do século 14, quando os turcos avançavam em direção aos Bálcãs. Por mais de 400 anos, o país ficou sob controle de Istambul.

No século 19, os otomanos já não eram mais a superpotência que ameaçava a cristã Europa, e as províncias balcânicas começaram a se rebelar. Em 1804, os sérvios decidiram pegar em armas. A revolta durou quase dez anos, e em 1809, na cidade de Nis, 10 mil rebeldes enfrentaram 20 mil otomanos na Batalha de Cegar.

Mesmo em menor número, os sérvios conseguiram causar pesadas baixas no inimigo, mas pagaram um preço alto pela sua falta de coordenação, fruto da rivalidade entre dois dos comandantes. Um deles, Stevan Sindelic, liderando 3 mil homens, eventualmente ficou cercado pelos otomanos.

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A derrota era certa, e Sindelic sabia que ele e suas tropas seriam empalados. Além da humilhação, ter seus corpos tratados assim passaria uma mensagem desencorajadora de terror aos compatriotas. Para evitar tal desfecho, o comandante decidiu um fim kamikaze: explodiu o paiol de pólvora sérvio, matando todos ao redor, inclusive ele.

Batalha de Cegar (1809)
Batalha de Cegar (1809) Imagem: Domínio Público

Mesmo assim, os turcos se saíram vencedores da batalha. O governador da Rumélia, a província otomana que constituía boa parte dos Bálcãs, ordenou que as cabeças de Sindelic e seus homens fossem enviadas ao sultão, Mahmud 2º, e que depois retornassem.

Então, o povo de Nis ganhou um novo monumento do benevolente império. A estrutura poderia ser contemplada a qualquer hora e ser visitada por todos que passassem pela estrada que ligava Belgrado a Istambul. Uma diabólica torre com quase mil crânios humanos enfileirados nos quatro lados.

Era um sinal claro e grotesco de que os turcos não deixariam a Sérvia tão cedo. Os otomanos derrotaram definitivamente os rebeldes em 1813. A luta pela independência seria longa.

Um símbolo de morte decadente (e resgatado)

Skull Towerem gravura de 1863, por Felix Philipp Kanitz
Skull Towerem gravura de 1863, por Felix Philipp Kanitz Imagem: Domínio Público
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Com o passar dos anos, os crânios caíam da torre. Além disso, ela foi saqueada por parentes de vítimas da explosão, que queriam dar um enterro digno aos seus, ou por meros ladrões de túmulos.

Em 1861, o governo ordenou o desmonte do que sobrou do monumento. Foram necessários ainda mais 17 anos para enfim a Sérvia conquistar a independência.

O novo país fez um movimento semelhante ao que o Timor-Leste fez nos anos 1990 em relação à Indonésia - o que foi, coincidentemente, o tema da coluna na semana passada. Ou seja, apropriou-se da torre e a transformou em objeto de culto nacional.

Por falar em anos 1990, a Sérvia é bastante lembrada, até hoje, pelos seus atos nas guerras da Iugoslávia, em especial na Bósnia e no Kosovo. Ou seja, os sérvios são, supostamente, "eternos vilões" e fim de papo.

Mas, da mesma forma que a Indonésia foi vítima de séculos de imperialismo holandês e depois seus governantes cometeram atrocidades contra socialistas e timorenses, a Sérvia, que ocupava o noticiário internacional de 30 anos atrás com seus "carniceiros dos Bálcãs", passou centenas de anos oprimida pelos otomanos. A história é sempre mais complexa do que print de zap.

Skull Tower
Skull Tower Imagem: Getty Images
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Então, os sérvios decidiram restaurar a torre de crânios, erguer um baldaquino (tipo de dossel sustentado por colunas) sobre ela e construir uma capela em homenagem aos compatriotas mortos no local. A obra foi concluída em 1892, mas mesmo sem esses melhoramentos a torre comovia e chocava.

Nada como um poeta romântico francês para nos dar uma dimensão do que significava ver aquele grotesco monumento. Alphonse de Lamartine, que estava em Nis em 1833, ficou perplexo, como conta o jornalista britânico Tim Judah, especializado em Sérvia e Kosovo, no livro "The Serbs: History, Myth and the Destruction of Yugoslavia" ("Os sérvios: história, mito e a destruição da Iugoslávia", sem edição brasileira)

"Meus olhos e meu coração saudaram os restos mortais daqueles homens corajosos cujas cabeças decepadas foram a pedra angular da independência de sua pátria (...) Que os sérvios conservem este monumento! Ele sempre ensinará aos seus filhos o valor da independência de um povo, mostrando-lhes o preço real que os seus pais tiveram de pagar por isso", escreveu Lamartine - que também era político e seria um personagem fundamental para a Segunda República Francesa, instaurada após a Revolução de 1848.

Os sérvios levaram a sério e trataram a torre como um dos principais símbolos do período otomano e da luta pela liberdade. Durante os anos em que o país integrava a Iugoslávia (1918-1992), excursões escolares visitavam o monumento aos milhares, todos os anos. Poetas e bandas de rock locais se inspiraram nele para suas obras.

Ainda hoje, a torre é um destino turístico importante da Sérvia. Mesmo que restem somente algumas dezenas de crânios, não é em todo lugar que se vê um monumento do tipo. Um recado do quão baixo podemos ir, e do quão valiosa a liberdade é.

***

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PS.: Para os fãs do gênero, que sei que tem um monte lendo: a autora que mencionei no começo, Christine Quigley, da Universidade de Georgetown (Estados Unidos), escreveu outros livros de temática semelhante, do naipe "múmias do século 20".

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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