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Reportagem

ETs e mutantes no deserto: 'Triângulo das Bermudas' mexicano atrai multidão

26º41'N, 103º44'O
Zona do Silêncio
Reserva da Biosfera de Mapimí, Durango, México

A Reserva da Biosfera de Mapimí é uma área protegida pela Unesco situada a mais de 1.000 metros de altitude, no norte do México. Com paisagens de beleza desértica bruta, lagoa salgada, onças-pardas, raposas e espécies únicas de plantas, a reserva poderia ser, por si só, uma atração natural dessa região do país.

Mas o turismo se movimenta mais em torno de uma área específica, situada dentro dos domínios da reserva. É a Zona do Silêncio, local onde supostamente ocorrem eventos estranhos: rádios não funcionam, animais têm deformações, bússolas se comportam como bêbadas e encontros extraterrestres abundam.

As lendas existiriam há quase cem anos. Mas na verdade elas começaram a se espalhar mais recentemente, por causa de uma trapalhada envolvendo as Forças Armadas americanas. Em 1970, a Nasa veio - ou quase isso.

Como nasce uma teoria da conspiração

Em julho de 1970, a base militar americana de Green River, Utah, lançou um míssil Athena, como parte de um dos tantos testes que ela vinha fazendo desde 1964. Ao longo daqueles anos, o míssil caía onde estava programado para cair, o Campo de Testes de White Sands, no Novo México.

Mas, por algum erro, tecnológico ou humano, o míssil cruzou a fronteira e esteve prestes a causar uma desnecessária tensão internacional em plena Guerra Fria. Ao adentrar mais de 700 quilômetros no território mexicano, o governo do país não gostou, é claro, e ainda lembrou os Estados Unidos que, menos de três anos antes, outra barbeiragem fez um míssil cair bem próximo da fronteira.

Biósfera Mapimí, México
Biósfera Mapimí, México Imagem: José Antonio Aranda Pineda

Dessa vez, por sorte, nenhuma cidade foi atingida. Esses Athena eram um protótipo para uma arma maior, um míssil balístico intercontinental, mas ainda assim eram algo de respeito: 15 metros de altura e 7,2 toneladas. Para piorar, ele carregava duas pequenas quantidades de um isótopo radioativo de cobalto.

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O incidente diplomático não foi maior porque o foguete caiu numa área inóspita, entre os estados de Chihuahua e Durango. Tudo se resolveu rapidamente e poucas pessoas testemunharam a queda. Se esse cenário facilitou uma resolução pacífica, alimentou a profusão de lendas.

Pastores nos morros pensaram que pudesse ter sido um anjo caído. Um fazendeiro das redondezas ficou furioso quando seu gado fugiu dos currais em pânico. As pessoas nas cidadezinhas do entorno atribuíram o flash de luz a uma estrela cadente.

Mas o governo americano logo chegou, passou três semanas investigando, por ar e por terra (sem interrogar nenhuma das testemunhas) e encontrou o foguete enterrado na areia. Uma força-tarefa, capitaneada pelo morador Jaime González, protegeu o entorno enquanto os gringos preparavam sua remoção.

Os americanos construíram uma extensão da ferrovia só para retirar seu desastrado míssil. Voltaram para casa carregando os trilhos de volta rapidamente e mantiveram silêncio sobre o assunto.

González e outros empresários locais perceberam que a breve importância dada à região podia ser um chamariz turístico. Com um pouco de investimento em infraestrutura e uma narrativa envolvente, conseguiriam atrair visitantes.

Foi nessa época que começaram a surgir, ou pelo menos a crescer, os relatos embebidos em pseudociência que criaram a fama da Zona do Silêncio. Ganharam a imprensa local e, depois, a internacional. Hoje, fazendeiros afirmam que desde pelo menos os anos 1930 eventos misteriosos ocorrem ali.

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Mas o antropólogo Andrea Kaus defendeu, em sua tese de doutorado pela Universidade da Califórnia, que tudo foi deliberadamente criado para impulsionar o turismo após o incidente militar. Segundo ele, a criação da reserva, em 1977, acabou usada para alimentar a lenda.

Perpetuou-se o mito de que ela não passa de uma fachada para pesquisas secretas do governo, para observatório de fenômenos extraterrestres.

O problema é que o público atraído pelas histórias acabou sendo uma pequena dor de cabeça para os trabalhos reais de preservação. Chamados de "zoneros" ou "silenciosos", esses turistas são considerados meio patetas ou um pequeno incômodo, segundo Kaus.

"Para eles, a rara atmosfera da reserva transforma as ondas magnéticas e resulta em ocorrências estranhas, desde mutações na flora e na fauna até encontros com extraterrestres", escreveu.

As ondas anulariam os sinais de rádio em alguns pontos e fariam as agulhas das bússolas girar em círculos. Elas também criariam um vórtex que atrairia objetos da atmosfera, como o míssil Athena e os meteoritos que já caíram na região.

Fãs de teorias da conspiração adoram traçar paralelos para reforçar seus pontos de vista, e nesse caso os "zoneros" usam paralelos literais. O que une a Zona do Silêncio às pirâmides do Egito, ao Triângulo das Bermudas e às cidades sagradas do Tibete? Todos ficam entre os paralelos 26 N e 28 N.

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Lá, as tartarugas têm cascos estranhos, de formato triangular. Uma espécie de cacto pode adquirir uma exótica coloração violeta. Até as pessoas tendem a ser mais altas. Ora, isso tudo indica que se trata de uma região com fenômenos esquisitos.

Isso sem contar a presença de vida extraterrestre. "Zoneros" passaram a realizar encontros e conferências na área, e um grupo específico, o Centro de Investigación de Antropología Cósmica de la Escuela Filosófica Lu Men, defendia que uma civilização perdida maia vivia diretamente abaixo do deserto.

Enquanto fazendeiros como Benjamín Palácios, cuja propriedade tem um pequeno disco voador na entrada, afirmam que existem pontos mortos para rádios e bússolas na Zona do Silêncio, Kaus e as pessoas que ele entrevistou em sua tese jamais tiveram problemas do tipo. O resto tem explicação científica.

"As supostas mutações são fenômenos naturais. Os triângulos são uma variação normal nas tartarugas-do-bolsón e o [cacto] coyotillo adquire um tom violeta durante secas", explica.

Essa tartaruga, que vive apenas em Mapimí, encontra-se em estado crítico de ameaça de extinção. É um lembrete de que a reserva da biosfera não é um plano obscuro governamental para esconder alguma "verdade lá fora", mas uma tentativa real de preservar uma porção sensível e relevante da natureza.

Carlos García Gutierrez, geólogo, geógrafo e um estudioso renomado na região, sempre foi um duro combatente da Zona do Silêncio. Dizia que o próprio nome, e toda a carga de pseudociência que rodeava o conceito, era uma amostra de falta de crítica, falta de critério e pobreza intelectual.

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Segundo Kaus, os residentes locais se incomodam com os "zoneros". Alguns, quando perguntados onde ficava a Zona do Silêncio, respondiam, invariavelmente, que era só seguir em frente, tentando assim se livrar do estorvo.

Um fazendeiro, ao ser abordado por um carro cheio de gente, foi mais debochado: "Sigam a estrada até verem marcianos pulando de um lado para o outro." A surpresa maior foi a reação dos tolos forasteiros: agradeceram e seguiram adiante.

A Zona do Silêncio, esse fictício triângulo sobrenatural entre os estados de Chihuahua, Durango e Coahuila, "é uma forma especialmente infeliz de turismo que se baseia na fabricação de eventos e fenômenos e incentiva a coleta de fósseis e artefatos arqueológicos", diz Kaus.

'Zoneros' saem das estradas principais para explorar ou acampar. Levam lenha, deixam lixo, destroem propriedades e largam portões abertos, o maior pecado numa área de produção pecuária. Frequentemente, precisam ser resgatados, pois é raro que estejam preparados para as distâncias, a qualidade da estrada ou a falta de água. Além disso, muitos voltam irritados quando não encontram as coisas estranhas que procuram.

A tese de Kaus é dos anos 1990. Mas uma reportagem de 2024 no jornal mexicano "El Diario" mostra que a "pedra no sapato" persiste.

É o tipo de turista que fez Bali distribuir multas e Quioto bloquear acessos. Mal-educados são tão espaçosos que conseguem criar "overtourism" até mesmo no vazio descomunal do deserto.

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Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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