Geleira condenada virou parque do aquecimento global. Marketing deu certo?
9º55'S, 77º10'O
Glaciar Pastoruri
Parque Nacional Huascarán, Ancash, Peru
O balaio de lugares que poderemos perder de uma vez por todas para as mudanças climáticas é cada vez maior. Mas, hoje, talvez os mais emblemáticos sejam as montanhas nevadas e geleiras.
Sim, um estudo da Nasa repercutiu bastante ao apontar a Amazônia e o Centro-Oeste entre as regiões que podem se tornar inabitáveis. Sim, o aumento do nível dos mares pode devastar cidades costeiras e países inteiros - como toda pessoa coerente e que não é negacionista sabe faz tempo.
Mas essas projeções falam do caos dentro de algumas décadas. Isso é perigoso justamente porque fica num tempo longe demais para lideranças políticas se preocuparem e perto demais para ainda termos alguma chance.
No caso das montanhas, essa é uma luta em que já podemos visualizar a derrota ano a ano. É algo mais palpável. Escancarado.
Já faz mais de 20 anos que Chacaltaya, na Bolívia, não é mais a estação de esqui mais alta do mundo. Hoje ela é só a ex-estação de esqui mais alta, porque a falta de precipitação forçou seu desligamento.
Na Europa, esportes de inverno dependem cada vez mais de neve artificial. O Piemonte já tem um cemitério de pistas de esqui.
A Terra pode perder metade de seus glaciares este século. São mais de 100 mil geleiras espalhadas pelo globo. Quer dizer, não tão espalhadas, porque todas ficam concentradas em cerca de 40 países e territórios.
O Peru contém a maioria dos chamados glaciares tropicais (que, por ficarem em regiões mais quentes, são mais sensíveis às mudanças climáticas).
Na década passada, o país elegeu uma geleira específica para uma ação que misturou conscientização ambiental, marketing agressivo e o chamado 'turismo de última chance'.
Que lugar é esse?
A morte de uma geleira não é o fim de um destino turístico. Isso é um detalhe, triste, mas apenas um detalhe. A morte de uma geleira muitas vezes significa o colapso de ecossistemas e a insegurança de comunidades inteiras, privadas do fornecimento de água - além das perdas econômicas do fim do ecoturismo na região.
Em 2013, o Pastoruri, um dos glaciares mais populares do Peru, já se encontrava num estado tão lastimável que o turismo local tomou uma medida ousada: criou a Ruta del Cambio Climático. A trilha, que serviria como testemunho vivo das mudanças climáticas, ganhou um museu na entrada e placas informativas mostrando a retração da geleira ao longo dos anos.
Milhares de turistas visitavam o Pastoruri. Montanhistas veneravam a muralha de gelo, esquiadores se deliciavam nas vastas pistas. Mas tudo isso foi ficando cada vez mais chinfrim, até que a geleira ganhou esse, digamos, reposicionamento de marca.
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Quero receberEm poucas décadas, o volume de gelo se reduziu a um terço do de antigamente. Em 2007, a geleira se fragmentou em duas partes. Em 2012, eram três blocos. Tecnicamente, não se trata mais de um glaciar, porque ele não cresce no inverno, com a neve. Só diminui, ano a ano.
Cada vez menor, ele atraía, consequentemente, cada vez menos gente. Os 100 mil visitantes anuais nos anos 1990 viraram 30 mil em 2012. A economia local sentiu o baque, comércios fecharam as portas, vendedores deixaram tudo para trás para procurar emprego nas cidades grandes.
Os peruanos até tentaram algumas soluções para retardar o derretimento, como pintar pedras de branco, para refletir a luz solar, ou revestir grandes superfícies com serragem. Fecharam temporariamente o parque, a fim de evitar que as multidões degradassem ainda mais o fragilizado glaciar.
Nada adiantou. Então, decidiram transformar o Pastoruri, uma das cerca de 700 geleiras do Parque Nacional de Huascarán, em um monumento ao aquecimento global.
A ideia era conscientizar o público. Fazia sentido, pois o glaciar sempre foi popular também pela facilidade do acesso: uma hora de carro de Huaraz, que por sua vez fica a uma hora de avião de Lima. Então a "ruta" tinha tudo para chamar a atenção de turistas locais e estrangeiros.
De fato, chamou. Virou matéria em diversos países. Os problemas locais ganharam destaque. "A mineração é uma grande ameaça às cabeceiras dos rios, além do sobrepastoreio no interior", disse o então chefe do parque à BBC britânica em 2013.
Mas, dez anos depois, a mensagem parece ter perdido força. O jornal "The Washington Post", ao visitar o parque recentemente, flagrou um museu esvaziado.
O número de visitantes segue bem menor do que o dos tempos áureos. Vicunhas, o menor dos camelídeos andinos, passeiam graciosamente na paisagem, salpicada de puias, a "rainha dos Andes", curiosa planta da família das bromélias que pode atingir 4 metros de altura.
No museu, mensagens dizem que é urgente conscientizar a população sobre os desafios das mudanças climáticas. Outra placa revela que o gelo encolheu mais de 570 metros entre 1980 e 2013. "Mas o vazio da sala faz a mensagem soar trágica. O Pastoruri emite um alerta vital", diz a reportagem. "Mas quem está ouvindo?"
A trilha podia ter despontado como um dos destinos mais famosos do chamado turismo de última chance. Essa tendência de visitar os lugares mais ameaçados da Terra antes que desapareçam, como o Ártico ou a Grande Barreira de Corais (e, pelo andar da carruagem do apocalipse, o Pantanal), é vista como controversa, porque estimula um turismo às vezes agressivo em regiões já fragilizadas.
Fora a poluição gerada pelos aviões que levam essa galera (se bem que tal argumento, vamos combinar, é semelhante àquele que coloca o seu banho demorado em pé de igualdade com o agro e a indústria em termos de desperdício de água).
O marketing teve sucesso limitado. Mas o Pastoruri segue como um destino de turismo de última chance. Infelizmente, não lhe resta outra alternativa.
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