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Jesus com cabeça de burro: como surgiu a imagem mais antiga da crucificação

41°53'N 12°29'E
Palatino
Roma, Lácio, Itália

Em tempos de uso e abuso de palavras como "apropriação" e "ressignificação", uma anedota ajuda a explicar a história do símbolo máximo da maior religião do planeta. Como é que uma das imagens mais poderosas, reconhecidas e emblemáticas de todos os tempos já foi uma sátira ofensiva, pichada num muro qualquer, que mostrava Jesus com cabeça de burro?

Esse foi o início ridículo da saga do crucifixo. Pelo menos até onde a ciência sabe.

A representação mais antiga de que se tem notícia de um crucifixo é uma pichação em um muro de Roma que mostra, aparentemente, um jovem orando para um sujeito com cabeça de burro. Junto à figura há uma legenda em grego que diz algo como "Alexamenos adora seu deus".

Grafite de Alexamenos
Grafite de Alexamenos Imagem: Domínio Público

Seria portanto uma obra de escárnio, feita para zombar do tal Alexamenos, um tolo que idolatrava um pobre coitado com cabeça de burro que morreu na cruz. Não se sabe a data exata da pichação, mas ela teria sido feita em algum momento em torno do ano 200 (depois de Cristo, evidentemente).

O Grafite de Alexamenos, como ficou conhecido, foi descoberto durante uma escavação em 1857. Hoje ele está preservado no Museu Palatino, localizado na colina de mesmo nome, próxima do local original do muro grafitado.

É uma história curiosa e pitoresca, além de potencialmente ofensiva para uma audiência de 18 séculos depois que ficou chocada com uma abertura de Olimpíada. Mas o grafite também levanta uma série de perguntas.

Por que um burro?

"Ai, que burro, dá zero pra ele!" Silvio Santos fez com que gerações de brasileiros conhecessem o autor da frase e até a entonação dela. Mas o burro de Alexamenos não é o burro do Chaves.

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No Império Romano, judeus e os primeiros cristãos eram apontados, pejorativamente, como adoradores de burros. Seria uma maneira de fazer pouco da fé desses monoteístas. Segundo o professor de estudos da religião Tennyson Jacob Wellman, em um artigo na publicação acadêmica "Religion and Theology", eles eram acusados até de sacrificar forasteiros em honra a uma cabeça dourada de asno.

O Grafite de Alexamenos seria um exemplar dessa tendência de espalhar mentiras para reforçar estereótipos e preconceitos contra os credos dos outros. Algo comum ao longo da história de muitas religiões, do judaísmo ao candomblé.

Essa relação com o burro era baseada em uma afirmação errada feita pelo pensador romano Apião. No século 1º d.C., ele havia escrito que os judeus cultuavam um deus com cabeça de burro.

Por que mostrar alguém crucificado podia ser ofensivo?

Fórum Romano
Fórum Romano Imagem: Getty Images

Nos primeiros séculos de sua existência, o cristianismo era uma seita perseguida, hostilizada, marginalizada. Muito disso passava pelo fato de que cristãos adoravam um homem que morreu na cruz.

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A crucificação era um método de execução comum na Antiguidade, e no Império Romano da época em que Jesus viveu ela era a forma típica para eliminar escravos, pequenos criminosos e pobres que ousassem desafiar o poder. A ciência acredita que Jesus foi um de milhares de homens mortos assim.

Provavelmente, a execução foi um pouco diferente da imagem famosa que conhecemos. Jesus teria tido os braços amarrados na cruz. Não se pregavam as mãos, porque elas rasgavam com o peso, então deixar os braços atados era uma forma mais eficiente de prolongar o sofrimento: os braços acabavam se soltando das juntas, dificultando a respiração, o que levava a uma morte lenta e dolorosa por sufocação.

Morrer na cruz era um martírio excruciante, de uma crueldade que certamente faria os olhos doentios de torturadores de outras eras brilharem. Era, também, uma humilhação tremenda: os corpos eram largados ali para apodrecer.

Para alguns dos primeiros cristãos, seu líder ter sido crucificado como um bandido mequetrefe ou um agitadorzinho político era motivo de certa vergonha, explica a professora Robyn Whitaker em um artigo no site "The Conversation". Demoraria séculos para que eles se apropriassem da imagem para criar o crucifixo como o conhecemos. Nesse meio tempo, surgiam imagens como o Grafite de Alexamenos.

Quando a cruz virou cristã?

Para a especialista em arte primitiva cristã Felicity Harley-McGowan, os devotos começaram a criar imagens inspiradas na religião mais de 100 anos depois dos primeiros escritos sobre o tema. Foi só lá pelo ano 200 que a tradição começou, e ainda assim os motivos escolhidos eram bastante limitados.

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Histórias bíblicas com imagens bucólicas e as sagas de personagens como Daniel e Abraão estavam entre elas. A crucificação brutal e humilhante de Jesus, não.

Cenas de morte começaram a surgir no século 4º. Mas o foco estava na cura, na nova vida, como a ressurreição da filha de Jairo milagre descrito nos evangelhos.

A obra de arte mais antiga (ou pelo menos uma das) de que se tem notícia sobre a execução de Jesus segue esse viés mais positivo, digamos assim. Trata-se de um painel de marfim que mostra, finalmente, Jesus na cruz, mais de 400 anos após sua morte. Mas é um Cristo triunfante, de olhos abertos muito vivos, bem diferente de Judas, enforcado ao lado.

Crucificação na Idade Média
Crucificação na Idade Média Imagem: Reprodução/Museu Britânico

A peça integrava um conjunto de quatro obras que adornavam um caixão ou um relicário. No século 19, ela fazia parte da coleção de William Maskell, um medievalista e antiquário eclesiástico. Desde 1856, está no acervo do Museu Britânico.

Somente no século 6º imagens da crucificação começaram a ficar mais comuns. Se a cruz, dada sua simplicidade, já era usada em uma porção de contextos desde os tempos em que a humanidade fazia arte em cavernas, o crucifixo - representação de Jesus na cruz - é um produto da Idade Média.

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