Templo religioso foi construído em apenas 12 horas. O motivo? Uma rixa
31º34'N, 74º19'L
Mesquita Shab Bhar
Lahore, Punjab, Paquistão
Que tal resolver uma treta religiosa territorial, em que dois grupos disputam até mesmo uma esquina? A fim de evitar uma onda de intolerância, é melhor buscar um juiz externo para arbitrar o caso. E, para vencer, forneça o melhor argumento. Ou melhor, construa.
Templos não precisam demorar séculos para ficarem prontos. Às vezes, dá para fazer da noite para o dia. Literalmente, pelo menos segundo o que se conta em Lahore.
Que lugar é esse?
Em urdu, idioma oficial do Paquistão, "shab bhar" significa algo como "a noite toda", "ao longo da noite". Esse é o nome pelo qual é conhecida uma pequena mesquita que se tornou um símbolo pitoresco das disputas sangrentas entre muçulmanos e hindus no Subcontinente Indiano.
Em dezembro de 1934, segundo o relato oral do zelador da mesquita, o bairro de Shah Alami, em Lahore, foi palco de uma pequena, mas simbólica, disputa étnica. O caso foi descrito no livro "The Mosques of Colonial South Asia", da historiadora Sana Haroon, professora da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos.
Um muçulmano, dono de uma barraquinha de comida de rua, disputava o mesmo espaço com um concorrente, hindu. Nenhum dos dois tinha qualquer documentação que comprovasse a propriedade do terreno. Um magistrado teria, portanto, que julgar o caso.
Então, um grupo chamado Anjuman-i Islamia teve uma ideia. Reuniu muçulmanos identificados com a causa nos arredores da antiga muralha da Lahore. Com barro e argila, os homens ergueram, na calada da noite, uma mesquita no terreno disputado.
O edifício era pequeno e simplório, o que não diminuía o feito. Em uma questão de poucas horas, supostamente entre o pôr e o nascer do sol, um templo brotou naquela área.
A mesquita propriamente dita ficava no andar superior. No térreo, havia duas lojas, que foram oferecidas ao comerciante em troca do uso do espaço pelos religiosos.
O magistrado concedeu a vitória ao grupo e, com a disputa resolvida, o município regularizou a venda do prédio ao Anjuman-i Islamia. A mesquita segue em funcionamento.
História tensa e lambança internacional
Àquela época, o Paquistão integrava a Índia Britânica, principal colônia do decadente Império Britânico. Após anos de luta pacífica, liderada por Gandhi, e alguns dias de muita violência em 1946, um plano começou a ser desenhado para criar um país de maioria hindu e outro, muçulmana.
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Quero receberProvíncias mais próximas do Irã e do Afeganistão eram fáceis de resolver, pois tinham uma clara maioria muçulmana. Já Bengala e Punjab eram complicadas e acabaram repartidas pelos ingleses com base, teoricamente, em mapas censitários socioétnicos.
Em vez de redesenhar essas fronteiras aos poucos, à medida que se realocasse as populações, Louis Mountbatten, o último vice-rei da Índia (e o tio do príncipe Philip que aparece bastante em "The Crown"), decidiu liberar o subcontinente de uma vez. O portão da encrenca se escancarou.
No início, hindus se voltaram contra muçulmanos, acusando-os de terem dividido o país. Depois, houve retaliação, e os ciclos de vingança se esparramaram.
As ondas de violência não poupavam nem colunas de refugiados. Paravam trens que transportavam pessoas deslocadas e os transformavam em trens fantasmas, carregando nada mais que cadáveres.
Gandhi fez greve de fome para protestar, o que surtiu efeito, pelo menos em Bengala. Mas ele acabou assassinado por um radical hindu em 1948.
Cerca de 14 milhões de pessoas fugiram de suas casas: 7,3 milhões de hindus e sikhs deixaram o Paquistão e 7,2 milhões deixaram a Índia. Os expurgos de 1947 mataram 500 mil pessoas.
Além disso, a divisão criou uma das fronteiras mais voláteis do mundo, que reverberaria pelas décadas seguintes. Índia e Paquistão se estranharam diversas vezes pelo controle da Caxemira, numa rixa que nos anos 1950 ganhou as onipresentes cores da Guerra Fria, com o Paquistão aliado à União Soviética e a Índia, aos Estados Unidos.
Em 1971, nova ruptura. Apoiados pela Índia, os separatistas do Paquistão Oriental declararam independência e mudaram o nome do país para Bangladesh.
Lahore, capital da província paquistanesa do Punjab, é hoje a segunda maior cidade do Paquistão. Centro cultural milenar, com uma mancha urbana de 14 milhões de habitantes, essa megalópole ainda reflete as tensões entre os vizinhos. No ano passado, o Punjab foi o recordista no país de casos de intolerância religiosa.
São dois países que têm bombas atômicas. Infelizmente, nem tudo dá para resolver como uma simples disputa de bairro por um ponto comercial.
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