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Reportagem

Estátua romana virou símbolo fascista e acabou em praça LGBT no Arouche

23º32'S, 46º38'O
Largo do Arouche
República, São Paulo, São Paulo

Em 1863, arqueólogos italianos descobriram algo realmente incrível. Ainda assim, eles dificilmente imaginariam que aquilo acabaria, de um jeito torto, descontextualizado e enviesado (para dizer o mínimo), enfeitando a paisagem de uma ainda acanhada metrópole sul-americana.

O imperador Augusto foi parar no centro de São Paulo, e pouca gente entendeu.

Naquele ano, em Prima Porta, no norte de Roma, as escavações encontraram uma das mais bem preservadas estátuas de mármore do primeiro imperador romano. Conhecida como Augusto de Prima Porta, ela foi doada ao papa Pio 9º e até hoje está no acervo dos Museus do Vaticano.

Até aí, é uma história relativamente comum. O mais notório foram os caminhos e as interpretações que a obra ganhou com o tempo.

Significado original: vitória da paz

Estátua de César Otávio Augusto, nos museus do Vaticano
Estátua de César Otávio Augusto, nos museus do Vaticano Imagem: Getty Images

A estátua foi feita durante o governo de Tibério (14-37 d.C.), enteado e sucessor de Augusto. Provavelmente, é uma cópia de uma feita em bronze, encomendada após uma importante vitória do imperador. Na base da diplomacia, Augusto negociou a libertação de reféns e de estandartes militares com o Império Parta, poderoso rival que ocupava uma grande área no Oriente Médio.

Depois de mais de um século de guerras, uma vitória pacífica desse porte foi um feito notável. Além do mais, condizia com o discurso de pacificação promovido por Augusto. Por isso, o Senado teria encomendado a estátua e a instalado em um local de destaque.

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Infelizmente, a original de bronze se perdeu. Restou a cópia de mármore, descoberta no século 19. Décadas mais tarde, ela deu origem a novas réplicas, de bronze, que se espalharam para difundir a palavra de uma certa corrente política que dominou a Itália dos anos 1920 aos 1940.

Significado deturpado: propaganda fascista

Estátua de César Otávio Augusto, em Zaragoza, Espanha
Estátua de César Otávio Augusto, em Zaragoza, Espanha Imagem: Getty Images/iStockphoto

O governo Mussolini mandou produzir cópias do Augusto de Prima Porta e as espalhou pela Itália e por lugares com forte conexão com a cultura do país - e, também, com alguma, ou muita, simpatia pelo fascismo. Havia réplicas, com algumas diferenças imagéticas daquela no Vaticano, em escolas por todo o país e também em Portugal e na Espanha. A cidade de Zaragoza, por exemplo, ganhou a sua, no regime franquista, em uma ocasião cheia de pompa e simbolismo.

Outra cidade que fez festa quando ganhou seu Augusto de Prima Porta foi São Paulo.

"Augusto de Prima Porta era o modelo ideal de líder universal que Mussolini tanto almejava", explica o historiador Giovanni Pando Bueno em um artigo na "Ponto Urbe", revista do núcleo de antropologia urbana da USP.

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"As réplicas disseminavam a presença do líder fascista pelo mundo e aproximavam as comunidades italianas dispersas de seu comandante na intenção de compor uma unidade global."

Mussolini, espertamente, não fazia isso por meio de sua própria imagem, o que poderia gerar alguma resistência. Então, ele vestia o véu da romanidade e usava a relativa neutralidade de Augusto para passar a mensagem. Quem iria negar uma estátua de presente retratando um dos maiores personagens da Antiguidade, afinal de contas?

Assim, em 1937, a capital paulista recebeu a estátua, num momento em que o governo italiano fazia uma propaganda global do fascismo. A ideia era reforçar essa pretensão imperial de Mussolini, colando sua imagem na de Augusto, "o grande líder pacificador", ao mesmo tempo que buscava aproximar o Brasil da Itália.

Por isso mesmo, o país topou participar de uma feira em comemoração pelos 50 anos do início da imigração italiana no Brasil. Para mostrar que levou o convite a sério, o governo fascista mandou fundir e enviar a São Paulo a estátua de Augusto.

No ano anterior, os fascistas tinham invadido a Etiópia, então essas estátuas serviriam também para passar outra mensagem. "O Duce respalda na 'Pax Augustana' a 'Pax Mussoliniana', assegurando ao mundo que, assim como na tradição que o legitima, suas conquistas foram em prol da concórdia e novas guerras não seriam mais travadas", escreveu Bueno.

Quer dizer, a estátua original enaltecia a paz entre impérios e a diplomacia. Mussolini queria surrupiar esse significado e dizer ao mundo que suas aventuras na África eram um "direito" da Itália, herdeira de Roma, e que ele, assim como Augusto, promoveria uma era de paz e prosperidade a partir de então.

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Evidentemente, naquela manhã de sábado em 1937, no Parque Dom Pedro 2º, quem visitava o pavilhão italiano via uma bela estátua do primeiro imperador romano e só. Não havia uma plaquinha dizendo que o Duce era o novo Augusto.

Mas as muitas atitudes e pretensões de Mussolini, segundo os historiadores, atestam isso. Um exemplo está na transformação que o Duce fez em Roma. Ele queria resgatar a capital do império à sua maneira, e para isso ordenou reformas na cidade que destruíram séculos de história medieval e renascentista.

Sim, Mussolini pensava muito no Império Romano. Todos os dias.

O Augusto paulista e a simpatia fascista em São Paulo

Inauguração da estátua do imperador Cesar Otavio Augusto e comemoração do 60º aniversário da imigração italiana para o Brasil, no largo do Arouche
Inauguração da estátua do imperador Cesar Otavio Augusto e comemoração do 60º aniversário da imigração italiana para o Brasil, no largo do Arouche Imagem: Mario Zilli/Folhapress)

Terminada a feira e desmontado o estande, o governo italiano resolveu dar a estátua a São Paulo. Menos de um ano depois, em 21 de abril de 1938, ela foi inaugurada em uma pracinha próxima à atual Biblioteca Mário de Andrade, na República, centro da capital paulista.

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O cônsul e o embaixador italianos estavam presentes na cerimônia, em que a primeira-dama da cidade, Renata Crespi, desvelou a estátua. Em seguida, Francisco Matarazzo Júnior e sua mãe, viúva recente do homem que simbolizou a ascensão da indústria paulista, receberam as autoridades em um almoço na chácara Matarazzo (hoje o Parque do Piqueri, no Tatuapé).

A participação da elite da indústria ítalo-brasileira não foi mera formalidade. Os Crespi e os Matarazzo, assim como outras famílias endinheiradas da colônia paulista, tinham grande admiração pelo fascismo. Se não todos os membros, ao menos alguns (e os mais importantes).

Os condes Rodolfo Crespi e Francesco Matarazzo - pais, respectivamente, de Renata e Francisco - conheceram Mussolini e tinham excelentes relações com o governo italiano, tendo feito inclusive doações. Crespi foi enterrado com a camisa negra fascista e Matarazzo, em um ritual fascista, como lembrou o historiador João Fábio Bertonha em um artigo para um seminário promovido pelo Museu de Arte Contemporânea da USP.

O fascismo se irradiou por diferentes instituições italianas, segundo o jornalista Roberto Pompeu de Toledo no livro "A Capital da Vertigem" (Objetiva).

"Inclusive o Circolo Italiano, que desde 1910 congregava os mais influentes membros da colônia. A partir de 1928 o Circolo passou a ceder sua sede da rua São Luís a reuniões do Fascio", escreveu.

Se a elite italiana gostou da estátua e abraçou a causa do Duce, não quer dizer que o resto da cidade seguiu a onda. Ubaldo Franco Caiuby, diretor da Sociedade Amigos da Cidade, se opôs ao Augusto de Prima Porta.

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"Não pelo que ela representava politicamente, mas por considerá-la estranha à cidade e à história do Brasil", segundo Bueno.

Até Claude Lévi-Strauss deu uma palinha no clássico "Tristes Trópicos". Ele escreveu que a estátua foi inaugurada "no meio de uma dessas ruas quase rurais, embora com três ou quatro quilômetros de extensão, que prolongavam o centro de São Paulo".

Disse que era "uma reprodução de bronze, em tamanho natural, de um mármore antigo, medíocre para falar a verdade, mas que merecia algum respeito numa cidade onde nada mais evocava a história anterior ao século passado".

O melhor vem a seguir. Augusto está com um braço levantado, e o povo deu ao gesto um novo significado, segundo Lévi-Strauss:

"A população de São Paulo decidiu que o braço levantado para a saudação romana significava: 'É aqui que mora Carlito' [Carlos Pereira de Sousa, um ex-ministro e político influente]. (...) Concluiu-se também que Augusto estava de short, o que só era engraçado em parte, pois a maioria dos passantes ignorava o saiote romano."

O pós-guerra e o destino da estátua

Estátua de César Otávio Augusto, no Largo do Arouche
Estátua de César Otávio Augusto, no Largo do Arouche Imagem: Avener Prado/Folhapress
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Nos anos 1940, o local passou por reformas para a construção do viaduto Nove de Julho, então o Augusto de Prima Porta foi retirado. Mas, com a Segunda Guerra Mundial e a entrada do Brasil como inimigo da Itália fascista no conflito, a estátua não foi apenas transferida. Ela foi retirada de circulação.

Só em 1948 ela voltou à cidade, em comemoração pelos 60 anos da imigração italiana. O ponto escolhido foi uma rotatória do Largo do Arouche, também na República.

Por uma dessas finas ironias que só o movimento das ruas e as vontades, movimentos e sacolejos do povo propiciam, na mesma época o Arouche começava a atrair um público específico: executivos que trabalhavam no Centro e buscavam bares discretos para se relacionar com outros homens.

No resto do Brasil, nos anos 1990, o Largo do Arouche era quase sinônimo de "Sai de Baixo", comédia da Globo de enorme sucesso na época. Mas, bem antes, desde a década de 1960, a região era conhecida em São Paulo por ser um centro LGBTQIA+.

Há outros destaques pelos quais ela poderia ser reconhecida. O Arouche tem restaurantes tradicionais, um mercado de flores centenário e outras estátuas embelezando o largo.

Mas os pontos de refúgio e socialização para as camadas mais vulneráveis da população LGBTQIA+ nos anos 1980, a criação do Centro de Cidadania LGBT, instalado na região na década passada, e, é claro, a profusão de bares e entretenimento focados nesse público reforçaram, ao longo do tempo, a fama do Arouche. É um dos mais antigos e importantes polos LGBT do Brasil.

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As obras do largo, entre 2019 e 2020, que transformariam (anunciadas com o típico estardalhaço do então prefeito João Doria) o local em um "bulevar parisiense", ficaram aquém do esperado até para quem queria vê-lo afrancesado. Doria passou, a importância do Arouche seguiu.

E a estátua segue lá, acompanhando os movimentos do tempo, cada vez mais escondida entre as árvores. Não que ela esteja totalmente esquecida e não incomode mais ninguém. Pelo contrário. O site "Guia Negro" o incluiu em uma lista de "monumentos racistas que poderiam ser derrubados" na capital paulista.

A Itália fascista perseguia gays e os confinava em colônias penais em condições abjetas. Mussolini não viveu para ver o destino improvável que a estátua que ele deu de presente a São Paulo teve. Tampouco os poderosos simpatizantes do regime que adoraram a presença do imperador romano em sua cidade.

E Augusto, então, o que diria? Dois mil anos depois, foi sequestrado por um ditador cuja influência ecoa, infelizmente, até hoje, e sem querer teve uma estátua em sua homenagem instalada numa praça que virou símbolo de uma minoria perseguida por esse mesmo ditador.

Um chute. Incrédulo, enfatizando o surrealismo cheio de significados dessa anedota, o imperador poderia ter mandado um: "Cala a boca, Magda!".

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