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Nada de 'aloha': possível origem do gesto 'hang loose' é triste e obscura

21º40'N, 157º86'O
Usina Kahuku
Oahu, Havaí, Estados Unidos

Lippy Espinda era um vendedor de carros usados que virou ator. Participou dos seriados "Havaí 5.0" (o original, de 1968, por isso mesmo chamei de "seriado", não de "série", que é um termo mais recente) e "A Família Sol-Lá-Si-Dó" (1969) e do filme "Inferno no Paraíso" (1974).

Nos anos 1960, ele aparecia em comerciais de TV e usava uma assinatura característica: dizia "shaka, brah!" e fazia uma saudação com o polegar e o dedo mínimo apontados em direções opostas - sim, fazendo o famoso "hang loose".

Por isso, já se creditou a essa figura da televisão havaiana a criação de um gesto que se tornou universal. É um exagero, mas Espinda ajudou, e muito, a popularizar o cumprimento e, especialmente, a batizá-lo: em inglês, o gesto é conhecido como "shaka".

A palavra teria uma possível origem improvável, o japonês. Mas o significado que ela ganhou a partir de meados do século passado é bem havaiano.

A versão mais provável para o surgimento do gesto é igualmente havaiana. Com um porém: a saudação, que virou um clichê do Havaí, teria se originado em um capítulo obscuro e pouco conhecido da história do arquipélago.

De onde veio o gesto?

Campo de cana de açúcar em Maui, Havaí
Campo de cana de açúcar em Maui, Havaí Imagem: Getty Images

Hamana Kalili era um trabalhador rural havaiano da primeira metade do século 20. Na época, a economia dessas ilhas do Pacífico girava em torno de um produto que também já foi central na história do Brasil, o açúcar. Certo dia, Kalili sofreu um acidente que, infelizmente, acontece até hoje por aqui: prendeu a mão no cortador de cana e acabou perdendo três dedos de uma mão.

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O engenho onde ele trabalhava, chamado Kahuku, transferiu o homem para outra função. Agora, sem dedos indicador, médio e anelar, Kalili era segurança na portaria da empresa.

A mão triturada no cortador cumprimentava as pessoas na rua, e logo a molecada começou a imitar Kalili, saudando-o com os dois dedos que ainda lhe restavam. Nasceu assim o 'hang loose'.

Será? É uma anedota redondinha demais, com cara de que foi escrita para a embalagem de algum suco bonzinho ou um café modinha.

Historiadores ouvidos pelo site "Atlas Obscura" e pelo diário "Honolulu Star-Bulletin", o maior jornal do Havaí, afirmam que Kalili era, sim, um trabalhador que se acidentou. Mas é difícil creditar o surgimento do gesto somente a ele.

Mutilações são relativamente comuns no trabalho com a cana-de-açúcar. E eram muito mais. Então, assim como Kalili, deveria haver uma porção de outros homens e mulheres com as mãos dilaceradas, sugeriu o historiador Mike Mauricio, do museu Hawaii's Plantation Village, dedicado a conhecer essa fase pouco conhecida da história do arquipélago.

É aí que está a verdadeira importância da origem do 'hang loose'. O papel dos havaianos na principal indústria local foi, muitas vezes, negligenciado.

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O reino da cana

Colheita de cana em Honolulu no século 19
Colheita de cana em Honolulu no século 19 Imagem: Getty Images

A cana-de-açúcar foi introduzida no Havaí há 1.500 anos. No começo do século 19, ela virou uma indústria que moldaria a economia e a geografia do arquipélago pelas décadas seguintes.

Àquela época, o Havaí era um jovem reino, unificado em 1795 por Kamehameha 1º. Com variedades de cana adaptadas para sua diversidade climática, o país conquistou espaço no comércio global do açúcar.

Mas era um reino fadado ao declínio desde o começo. A jornalista americana Julia Flynn Siler conta, no livro "Lost Kingdom: Hawaii's Last Queen, the Sugar Kings, and America's First Imperial Adventure" ("Reino perdido: a última rainha do Havaí, os reis do açúcar e a primeira aventura imperial dos Estados Unidos"), que as sementes da derrocada foram plantadas na mesma época.

Ela afirma que a chegada dos primeiros missionários cristãos, no começo do século 19, selou o destino do Havaí. No fim daquele século, filhos e netos desses missionários controlavam a maior parte das terras, os bancos e os navios.

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Esses descendentes abocanharam as propriedades da aristocracia havaiana, rica em terras, mas pobre em dinheiro, explicou Siler à NPR. O Havaí das pequenas fazendas e da diversidade agrícola foi arado e convertido em vastas monoculturas de açúcar.

Bem antes disso, nos anos 1850, o reino já sofria no comércio exterior. Os EUA, seus maiores parceiros, impunham taxas muito maiores à importação de açúcar do que as cobradas pelo Havaí por produtos americanos.

A rainha Lili'uokalani assumiu a coroa em 1891 em uma posição delicada. O Havaí passava por uma crise econômica, e a Coroa estava endividada, justamente, com os grandes engenhos de açúcar.

Em apenas dois anos, ela foi destronada pelos poderosos canavieiros. Era o fim do Reino do Havaí, que em 1898 se tornou um território americano. Em 1959, virou o 50º estado do país.

"Foi a primeira vez na história dos EUA que nós fomos além do litoral do nosso território e tomamos uma nação que era independente, soberana e reconhecida por outras potências. E nós a pegamos", explicou Siler.

Passar ao domínio americano não fez nada bem para a indústria da cana havaiana. Nas primeiras décadas do século 20, o país privilegiou a produção de um parceiro que, então, era o queridinho de Washington: Cuba.

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Colheira da cana no Havaí
Colheira da cana no Havaí Imagem: United States

Nessa época, o Havaí recebeu grandes levas de imigrantes para trabalhar nas lavouras e usinas. Eram chineses, russos, filipinos, noruegueses, coreanos e portugueses que, com o tempo, apagaram da memória coletiva a contribuição dos próprios havaianos ao setor.

A história de Kalili é importante também por lembrar que, no século 20, a produção de açúcar ainda contava com o trabalho de sua população mais tradicional. Havaianos não só continuaram plantando cana como perdiam dedos nos cortadores.

O novo Havaí

Trem que transportava cana de açúcar do Havaí
Trem que transportava cana de açúcar do Havaí Imagem: Getty Images

A produção de cana no arquipélago teve uma longa decadência. Aos poucos, foi substituída por uma indústria crescente, o turismo. A popularização do surfe, a partir de meados do século 20, ajudou a difundir a imagem das ilhas - e levou na bagagem o gesto que se tornou bastante associado ao esporte.

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Frank Fasi, que foi prefeito de Honolulu por 22 anos, mandava um 'hang loose' em suas campanhas nos anos 1970 e 80. Desde então, a saudação conquistou um espectro enorme de personalidades e personagens, uma espécie de "Norvana que uniu todas as tribos" (ou seria apenas mais uma apropriação cultural, segundo alguns).

Barack Obama, Dwayne Johnson, Ronaldinho Gaúcho, Kobe Bryant, Antoine Griezmann e Joselito Sem Noção são alguns nomes que já levantaram dedão e mindinho para a galera. O assunto é sério: este ano, o Congresso do Havaí aprovou uma lei que faz do shaka o cumprimento oficial do estado.

A medida chega alguns anos após o suspiro final da cana-de-açúcar no Havaí. No fim de 2016, o último engenho ainda em funcionamento encerrou as atividades. O açúcar, que enriqueceu o antigo reino mas acabou com sua independência, agora é mais uma atração turística nas ilhas, por meio de passeios às antigas fazendas.

Resta a lembrança, e uma saudação que, por mais ensolarada que pareça, representa décadas de apagamento histórico. Aloha.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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