Terra à vista!

Terra à vista!

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

A bizarra corrida da Guerra Fria para cavar o poço mais profundo do planeta

69º23'N, 30º36'L
Poço de Kola
Zapolyarny, Murmansk, Rússia

Em 1989, tabloides americanos e a rede cristã de televisão TBN, também dos Estados Unidos, noticiaram algo alarmante. Cientistas russos, em sua irritante mania de não respeitar os limites da natureza, descobriram o inferno!

O feito tinha sido publicado também em jornais sensacionalistas da Finlândia, provavelmente petrificados com o que seu vizinho andava aprontando. Aparentemente, um cientista chamado "Senhor Azakov" (assim mesmo, sem sobrenome, mas com pronome de tratamento) liderava uma missão que perfurou a superfície terrestre até ultrapassar a profundidade de 14 quilômetros.

Lá, para surpresa geral, eles teriam encontrado uma enorme caverna.

Intrigado, o tal Azakov decidiu investigar o que havia lá embaixo com microfones e outros instrumentos feitos para aguentar a temperatura superior a 1.000ºC. O time detectou uma sucessão de barulhos medonhos, urros de desespero, milhões de ecos de agonia desesperançada.

Aquilo seria uma comprovação da existência do inferno. Por essa nem Dante esperava.

O boato circulou nos anos 1990 e chegou à era da internet, quando ganhou variações. Uma delas colocava o lugar da história, não na Rússia, mas nos Estados Unidos, quando um acidente terminou com 13 trabalhadores de uma plataforma de petróleo mortos no Alasca.

Você pode escutar os "sons do inferno" no Youtube, que dariam uma ótima introdução para um disco do Massacration. Só que, por mais surreal que tudo isso seja, existe um fundo de verdade nessa lenda urbana.

Russos e americanos já tiveram uma "corrida rumo ao centro da Terra", durante a Guerra Fria. O lugar mais perto onde chegamos a isso foi na Península de Kola.

Continua após a publicidade

Que lugar é esse?

Caverna Ninho do Dragão, no Mar de Barents, na Península de Kola, na Rússia
Caverna Ninho do Dragão, no Mar de Barents, na Península de Kola, na Rússia Imagem: Getty Images

A Península de Kola é uma região no Ártico sob controle dos russos desde o século 15, nos tempos do Principado de Moscou. A região começou a ganhar mais importância para o país durante a era soviética, quando a população deu um salto.

A coletivização forçada dos rebanhos de renas afetou diretamente os lapões, povo original com vínculos muito fortes com a criação desse animal. Muitos deles foram deslocados, e quem resolvia peitar a nova ordem stalinista podia acabar morto ou em campos de trabalho forçado.

A mineração era uma atividade importante desde o século 18, e a ela se juntaram as indústrias da pesca e militar. Kola tem uma grande fronteira com a Finlândia e também com o extremo-norte da Noruega, membro-fundador da aliança militar criada para conter avanços soviéticos, a Otan. Logo, é uma região estratégica militarmente.

A partir dos anos 1950, a corrida armamentista-tecnológica-científica das superpotências ganhou um capítulo menos conhecido, temido e glorificado do que as disputas por armas atômicas que matam mais ou espaçonaves que vão mais longe.

Continua após a publicidade

O desafio aqui era, dito de maneira bem tosca: quem conseguiria cavar o buraco mais fundo?

A crosta terrestre é a fina camada que concentra tudo o que vem à mente quando pensamos no planeta. Todos os oceanos, cadeias de montanhas, formas de vida estão concentrados nessa casca que tem, em média, 40 km de espessura.

Se você comparar com o pico mais alto (o Everest e seus 8.848 m) ou o ponto mais baixo (a Fossa das Marianas e seus 10.984 m), a crosta, com seus 40 mil metros, parece um tanto grossa. Mas ela se apequena quando comparada ao tamanho do planeta.

A distância até o centro da Terra é de 6.730 km. Ou seja, se você cavar um buraco até o limite da crosta, terá percorrido uns 0,6% do percurso para chegar ao núcleo.

Mas se uma comparação ajuda a entender um aspecto, pode atrapalhar na compreensão de outros. O pouco que a crosta representa concentra, por exemplo, a maioria dos elementos químicos conhecidos, e a ciência sabia muito pouco do que há sob nossos pés.

Em suma, nessa fina camada havia muito o que descobrir.

Continua após a publicidade

Em 1979, os americanos estabeleceram um novo recorde, com o poço de Bertha Rogers, em Oklahoma, que chegou a 9.583 m de profundidade. Três anos mais tarde, os soviéticos atingiram 11.662 metros no Kola SG-3, que começara a ser cavado em 1970.

Em 1989, o SG-3, o terceiro de cinco poços escavados em Kola, chegou a seu ponto máximo: 12.226 m. Pouco depois, uma ruptura nas profundezas do buraco impediu a continuação, mas o recorde se mantém até hoje.

O que os cientistas descobriram

Estrutura destruída onde tentaram encontrar o buraco mais fundo do mundo
Estrutura destruída onde tentaram encontrar o buraco mais fundo do mundo Imagem: Getty Images

Os mais empolgadinhos podem se decepcionar, afinal foram só 12 quilômetros de descida, seria melhor ficar lendo Júlio Verne. Mas esses 12.226 m escavados em um poço de apenas 23 cm de diâmetro (feito com máquinas que adaptaram a tecnologia de perfuração de poços de petróleo para profundidades muito maiores) possibilitaram achados interessantes.

A perfuração permitiu uma visão direta da estrutura da crosta e pôde colocar teorias geológicas à prova. Uma delas foi a ausência da transição de granito para basalto, que os cientistas acreditavam que existia em algum ponto entre três e seis quilômetros abaixo da superfície.

Continua após a publicidade

A lama de perfuração que fluiu para fora do poço fervia com um nível inesperado de hidrogênio. Além disso, a água que se acumulou ao infiltrar no granito a uma profundidade de até seis quilômetros não se vaporizou, mas, por outro lado, a temperatura registrada no fundo do poço (12 km) era muito mais elevada do que o esperado: 180ºC (os cientistas estimavam que seria algo perto de 100ºC).

O calor extremo danificou o equipamento. Tão quente que as rochas já não estavam em estado sólido, o que dificultava manter a estabilidade. Era como manter um buraco no meio de uma panela de sopa quente, explicou o geólogo Benjamin Andrews, do Museu Nacional de História Natural, em Washington (EUA), à "Smithsonian Magazine".

Nada disso é tão intrigante quanto a descoberta de fósseis de plâncton a uma profundidade de 6,4 km. A evidência mais clara de vida no interior da crosta terrestre veio na forma de fósseis microscópicos envoltos em compostos orgânicos que permaneceram intactos, apesar da pressão e da temperatura extremas.

Que fim levou?

Estrutura destruída onde tentaram encontrar o buraco mais fundo do mundo
Estrutura destruída onde tentaram encontrar o buraco mais fundo do mundo Imagem: Getty Images

O último poço começou a ser cavado nos anos 1990, chegou a passar dos 8 mil metros, mas, devido à falta de investimentos em uma Rússia quebrada após o fim da União Soviética, foi abandonado em 1995. Os cientistas foram realocados para uma outra companhia a fim de seguir investigando o material descoberto ao longo de décadas.

Continua após a publicidade

Em 2007, a missão foi encerrada e o equipamento, transferido para uma empresa privada, que, ineficiente, fechou as portas no ano seguinte. Desde então, o local está abandonado.

Visualmente, ele pode ser muito menos impactante, sem nada de "infernal" como, digamos, o Portão do Inferno, no Turcomenistão. Mas, diferentemente do bizarro ponto turístico desse ex-satélite de Moscou, fruto de um desastroso experimento soviético, o poço de Kola é um registro bem-sucedido da ciência da antiga superpotência.

Já Kola voltou a ser uma região que pode esquentar nas atuais tretas geopolíticas. Com a entrada da Finlândia na Otan, em 2023, agora toda sua fronteira faz parte da aliança.

Se Putin resolver invadir esses vizinhos também, muita gente vai precisar voltar a abrir buracos. Dessa vez para se proteger.

Índice de posts da coluna Terra à Vista:

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

Só para assinantes