Praia que temia invasão espanhola acabou tomada por... peças de Lego
52º50'N, 9º26'O
Spanish Point
Miltown Malbay, Clare, Irlanda
Os rumores eram de assustar naqueles idos de 1587 e 1588. A temida Armada Espanhola estaria se preparando para invadir a costa da Irlanda? Era o que se dizia à boca pequena.
Após ter sido derrotada ao tentar invadir a Inglaterra, a marinha espanhola decidiu voltar para casa dando a volta pelo norte. Contornou as Ilhas Britânicas e desceu pelo Atlântico Norte, próxima à costa irlandesa.
A Ilha da Irlanda, naquela época, estava sob domínio inglês, e como boato e rumor sempre correm mais rápido do que notícia fidedigna, as autoridades sabiam da hipótese de uma invasão espanhola, mas não estavam a par de que eles já tinham sido derrotados. Ou seja, a Irlanda ainda temia uma improvável nova batalha naval.
A desgraça ibérica não havia terminado. Uma tempestade abateu a Armada, e os governadores ingleses determinaram que qualquer espanhol que chegasse à costa irlandesa fosse preso e executado. Bens valiosos que não tivessem afundado deveriam ser saqueados.
Dos cerca de 20 navios que teriam afundado na costa, dois acabaram no fundo do mar do Condado de Clare. Quando saíram da Espanha, eles carregavam mais de 600 homens e 50 canhões.
Os poucos sobreviventes do naufrágio foram executados e enterrados em uma vala comum. Embora não haja nenhuma evidência arqueológica, em 2015 historiadores locais encontraram uma cova que pode comprovar a origem do nome pelo qual esse pedacinho do litoral é conhecido: Spanish Point.
Que lugar é esse?
Hoje, Spanish Point é uma praia com seus atrativos turísticos. Tem o selo bandeira azul, concedido a praias bem preservadas e com infraestrutura que valoriza a sustentabilidade. Há casas de veraneio, um dos campos de golfe mais antigos da Irlanda e boas ondas para surfe.
Hoje, além das ruínas de um hotel histórico e da trágica história dos espanhóis, Spanish Point gera um novo, e peculiar, interesse para nós, caçadores de curiosidades. A praia integra o circuito de locais atingidos por um episódio tão divertido que é fácil de esquecer que foi também um desastre ambiental: o grande vazamento de peças de Lego, em 1997.
Brinquedos náufragos
No começo de 2021, um dragão foi avistado pela primeira vez em Spanish Point. Era um dragão de plástico, de brinquedo, mas ainda assim uma notícia e tanto. Especialmente para aqueles que acompanham os passos do projeto "Lego Lost at Sea".
Spanish Point entrou em um mapa que tem outros locais da costa irlandesa, além de pontos no Reino Unido (Inglaterra e Gales), Países Baixos, Bélgica e nas ilhas Jersey e Guernsey, dependências da Coroa britânica no Canal da Mancha. Em todos eles, pecinhas de Lego apareceram na praia, náufragas de um incidente que aconteceu há 27 anos.
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Quero receberFoi uma espécie de Verão da Lata em versão própria para menores de idade.
Em 1997, um navio cargueiro fazia a rota que liga Roterdã, o maior porto da Europa, a Nova York quando foi atingido por uma onda, ainda em águas europeias. A embarcação quase virou e todos os contêineres foram derrubados.
Entre eles, havia um com cerca de 5 milhões de peças de Lego - 4.756.940, para ser exato. O dragão encontrado em Spanish Point era um de 33.427 dragões pretos perdidos no mar. A versão verde é muito mais rara: apenas 514 dragões verdes estavam a bordo.
O contêiner ainda tinha 352 mil pares de nadadeiras, 88.316 florzinhas, 79.680 arpões e 4.200 polvos, além de botes, tanques de mergulho, coletes salva-vidas, cordames de navios e ervas marinhas. Sim, ironicamente, boa parte das pecinhas perdidas tinha uma temática naval.
Tracey Williams frequentava as praias de Devon, no sudoeste da Inglaterra, desde os anos 1960. No inverno de 1997, estimulava os filhos no passatempo que ela mesma gostava quando ia para lá com os pais - coletar vidro marinho, conchas e pedrinhas interessantes na praia -, quando peças de Lego começaram a aparecer na arrebentação.
Treze anos se passaram e a história, escondida em um canto da memória de Williams, voltou à tona, com o perdão do trocadilho, quando ela se mudou para a Cornualha, a pontinha do extremo-oeste do Reino Unido. Em 2010, Williams ficou estupefata ao ver, de novo, o brinquedo na areia. Como é que ainda apareciam peças de Lego na praia?
Mas não era só isso. Outros plásticos, desprovidos da aura de amor e carisma da marca dinamarquesa, também estavam se acumulando aos olhos de Williams. Boias, garrafas, calçados, cordas?
Então, ela teve uma ideia. Criou uma comunidade para que as pessoas que encontrassem peças de Lego na praia compartilhassem seu feito. Virou uma divertida caça ao tesouro que logo se espalhou pela Europa Ocidental e de quebra ajudou a limpar o litoral. Afinal, a pessoa que encontra um dragão de plástico muito provavelmente já coletou dezenas de garrafas pet na praia até conseguir tal proeza.
A comunidade tem o potencial de se espalhar pelo mundo. O oceanógrafo Curtis Ebbesmeyer ficou conhecido por estudar outro naufrágio plástico e colorido uns anos antes. Em 1992, milhares de patinhos de borracha e outros brinquedos de banheiro se espalharam pelo Pacífico. Ebbesmeyer analisou as correntes marítimas e catalogou o paradeiro desses itens ao longo do tempo.
Quando ocorreu o acidente da Lego, ele pediu à empresa um inventário do que havia sido perdido. Usou a própria banheira para testar o que boiava e o que afundava. Concluiu que metade das peças flutua, o que significa que muita coisa ainda pode aparecer, e em qualquer lugar.
"Correntes marítimas são como a melhor linha de metrô do mundo", ele disse ao jornal "The New York Times". "Elas levam qualquer coisa a qualquer lugar."
Peças que afundaram também podem ressurgir. Segundo Williams, redes de pescadores às vezes recolhem alguma. Em julho, a comunidade celebrou uma descoberta inédita: o primeiro dos 51.800 tubarões apareceu em um barco pesqueiro. "Faltam só 51.799", escreveu Williams na página do projeto.
São 86 mil seguidores no Facebook e 37 mil no Instagram. Williams se envolveu tanto com o projeto que até escreveu um livro a respeito.
Tudo isso é inegavelmente divertido, mas a caça ao tesouro pelas pecinhas náufragas é também um lembrete lúdico da poluição marinha. O acidente de 1997 foi possivelmente o maior desastre ambiental envolvendo brinquedos de que se tem notícia.
Em 2019, um estudo da Universidade de Plymouth, no Reino Unido, analisou tijolinhos de Lego para calcular quanto tempo eles durariam no mar. A qualidade do plástico do brinquedo, que ajuda a explicar por que ele encaixa tão bem (e por que é tão caro), é uma inimiga nessas horas: os cientistas estimam que as peças possam durar até 1.300 anos no oceano.
Ou seja, elas têm o potencial de virar resquícios arqueológicos da nossa era. O que diria alguém que encontrasse no ano 3300 um dragãozinho de plástico numa praia, emoldurada pelas ruínas da Torre Eiffel?
Ao jornal irlandês "Irish Examiner", Williams mostrou que se converteu em uma espécie de arqueóloga amadora especializada em plásticos. Ela já encontrou sapatinhos e acessórios de bonecas dos anos 1960, palitos de pirulitos dos anos 1970 e refletores de bicicleta que vinham em caixas de cereais matinais nos anos 1980.
Recentemente, a Lego vem tentando tornar seu plástico mais sustentável. Mas é um desafio. A maior companhia de brinquedos do mundo abandonou, em 2023, o projeto de usar um tipo específico de plástico reciclado ao constatar que isso aumentaria as emissões de carbono.
A ideia agora, segundo a empresa, é que até 2026 suas peças sejam feitas com 50% de plásticos renováveis ou reciclados. É esperar para ver.
Spanish Point (e outras praias) deverá ver novas pecinhas plásticas chegando em sua orla. É um futuro muito mais insistente do que aquele dos invasores espanhóis, que hoje estão só na memória das grandes aventuras marinhas.
Poderiam até estar mais, se a Lego retomasse suas coleções de piratas e afins com um kit da Armada Espanhola. Já pensou?
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