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Reportagem

Outra 'pirâmide mais antiga do mundo' é desmascarada: erro ou politicagem?

6º59'S, 107º03'L
Gunung Padang
Karyamukti, Java Ocidental, Indonésia

Há pouco mais de um ano, um artigo publicado na revista acadêmica "Archaeological Prospection" rompeu a bolha científica e chamou a atenção da imprensa. Pudera. O texto, assinado pelo geólogo indonésio Danny Natawidjaja, afirmava que um importante sítio arqueológico no país era, na verdade, uma pirâmide soterrada.

Mais que isso. Os autores cravaram que o monumento começou a ser construído há 25 mil anos, o que faria dela, de longe, a pirâmide mais antiga do mundo. Mas de muito longe!

Para colocar em perspectiva: a distância entre o nosso tempo presente e a época em que a Grande Pirâmide de Gizé foi erguida é menor do que o tempo que separaria a pirâmide egípcia e a indonésia, segundo o artigo. Quando Gizé foi construída, há 4,6 mil anos, o templo no Sudeste Asiático já teria uns 20 mil anos.

De acordo com Natawidjaja, a pirâmide foi obra de uma civilização sofisticada e desconhecida. Enquanto boa parte do planeta estava coberta de gelo e os humanos precisavam caçar e colher para comer, um povo em Java era tão avançado que já fazia pirâmides.

Que lugar é esse?

Gunung Padang
Gunung Padang Imagem: Reprodução/onlinelibrary.wiley.com

Gunung Padang é um sítio arqueológico em Java Ocidental. São cinco terraços artificiais, localizados no alto de um vulcão extinto e sustentados por muros de contenção. O artigo de 2023, no entanto, afirmava que o vulcão é uma pirâmide soterrada.

Uma escadaria de 370 degraus de pedra conecta os terraços ao vale. Estruturas megalíticas retangulares, compostas por centenas de blocos de andesito, cobrem esses terraços.

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Geólogos chamam os blocos de juntas colunares. São pedras que ganham um formato peculiar com o aquecimento e o resfriamento causados pela atividade vulcânica no passado.

Ou seja, é uma evidência de que se trata de vulcão extinto, não de uma pirâmide, e esse foi um dos vários argumentos usados para demolir o artigo de Natawidjaja. Tanto que, em março, a revista se retratou. Explicou que as datações de carbono aplicadas em amostras de solo não analisaram nenhum artefato feito por humanos. Logo, a interpretação de que o local se trata de uma pirâmide de pelo menos 9 mil anos é incorreta.

Cientificamente, foi uma pá de cal nas alegações, que vinham de anos antes. Natawidjaja passou um bom tempo defendendo a hipótese e chegou a convencer até Susilo Bambang Yudhoyono, presidente da Indonésia entre 2004 e 2014, que chegou a criar uma força-tarefa para estudar e, de preferência, comprovar a hipótese.

Não é difícil entender por quê. Um governante, de qualquer lugar do mundo, poder afirmar que, em seu mandato, o país descobriu ter a pirâmide mais antiga do mundo é um marco histórico, uma vitória política e um potencialmente enorme ganho econômico.

A Indonésia, que tem paisagens exuberantes e uma riqueza cultural tremenda, ganharia um ativo turístico de primeira grandeza. Ela poderia se tornar uma superpotência do setor.

Seria um dos raros feitos em que a arqueologia tem influência política. Tão raro que, nesse caso, foi fictício.

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O episódio foi mais uma demonstração dessa tara pseudocientífica por civilizações superantigas e superdesenvolvidas. É um caso semelhante, até certo ponto, ao da "pirâmide" de 12 mil anos na Bósnia, uma maluquice difundida até por Novak Djokovic, cuja capacidade para falar bobagens é tão boa quanto o talento na quadra de tênis.

Mesmo não sendo uma pirâmide feita há trocentos mil anos, Gunung Padang é um dos sítios arqueológicos mais importantes de Java. Do último terraço, a vista para os vulcões é impressionante, daquelas que atraem pela beleza e espiritualidade.

Muçulmanos sobem até lá para ler o Corão em meio às pedras. Hindus vêm de Bali para fazer rituais no nascer da lua cheia. Até praticantes de pencak silat, uma arte marcial indonésia, são atraídos pela montanha.

Os mistérios (verdadeiros) do templo

Visitantes de Gunung Padang
Visitantes de Gunung Padang Imagem: Garry Lotulung/NurPhoto via Getty Images

Os questionamentos sobre quem construiu as estruturas começaram há mais de 100 anos, quando o arqueólogo holandês Nicolaas Johannes Krom estudou o local. Uma lenda diz que um certo Siliwangi, inspirado por Sri Baduga Maharaja, governante de um dos últimos reinos hindus de Java Ocidental, no século 16, construiu Gunung Padang da noite para o dia.

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As estruturas mais antigas foram feitas há cerca de 2 mil anos, segundo estudos bem mais críveis do que o polêmico artigo de 2023. Há muito menos tempo do que os tais 20 mil anos, mas ainda assim isso faria delas um dos templos do tipo, chamados "punden berundak", mais antigos da Indonésia.

Gunung Padang é o maior e mais antigo desses templos, construídos por toda a Java, quando as populações locais estiveram em contato com reinos budistas e hindus que surgiram na região. As estruturas megalíticas serviriam para acalmar e celebrar espíritos ancestrais.

Por volta do século 5º, a região onde fica o templo teria sido absorvida por um império em ascensão, o Serivijaia, potência regional que expandiu o budismo pelo Sudeste Asiático ao explorar a chamada Rota da Seda Marítima.

Era um comércio que negociava utensílios de metal e têxteis da Índia e da China em troca de ouro e madeiras caras de Java. Possivelmente, a prosperidade gerada pelas transações possibilitou aos moradores do interior da ilha construir templos como Gunung Padang.

Após os trabalhos de Krom, Gunung Padang ficou esquecida pelos cientistas por mais de 50 anos. Em 1979, três fazendeiros de uma vila nas redondezas redescobriram o local. A partir de então, o governo da Indonésia, que conquistara a independência dos holandeses em 1945, passou a investigar o sítio, interessado em seu próprio passado remoto.

Assim a empolgação cresceu ao longo das décadas, até chegarmos à absurda afirmação da pirâmide, que foi baseada em uma amostra do solo sem nenhum vestígio humano. Um perplexo arqueólogo britânico resumiu a questão ao jornal "The Observer":

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Se você fosse ao Palácio de Westminster e retirasse uma amostra do solo a 7 metros de profundidade, você poderia datá-lo como tendo 40 mil anos. Mas isso não quer dizer que o Palácio de Westminster foi construído há 40 mil anos por humanos antigos. Significa apenas que há carbono lá embaixo com 40 mil anos.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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