Maior picareta da história criou país fictício, vendeu terras e morreu rico
15º52'N, 84º41'O
Costa dos Mosquitos
Reserva da Biosfera do Rio Plátano, Gracias a Dios, Honduras
Em 1822, um guia de 355 páginas chamou a atenção de moradores de Londres e Edimburgo. "Esboço da Costa dos Mosquitos, Incluindo o Território de Poyais", escrito por um certo Thomas Strangeways, divulgava as maravilhas desse pedacinho idílico do Mar do Caribe, tentando atrair britânicos ousados o suficiente para explorá-lo.
Strangeways descrevia o local como uma terra saudável, procurada por colonos europeus atingidos por doenças tropicais. Nesse spa natural, com água cristalina e florestas exuberantes, a terra era tão fértil que um agricultor poderia ter três colheitas de milho por ano, sem abrir mão de plantar açúcar ou tabaco (produtos muito rentáveis) sem esforço.
Além de ficar rico e saudável, aquele que se mudasse para Poyais teria comida e diversão fartas. Em um dia era possível caçar e pescar o suficiente para alimentar a família por uma semana. A capital, St. Joseph, era uma aprazível cidade barroca à beira-mar, com belas mansões, teatro, ópera, uma grande catedral, palácio e, em breve, um bairro judaico.
O guia era dedicado a "Sua Alteza Gregor, cacique de Poyais", e Strangeways se descrevia como seu "mais devotado, humilde e obediente servo". O texto fazia questão de frisar, no prefácio, que as informações contidas nele são fidedignas:
"Neste empreendimento, ele [Strangeways] se esforçou, tanto quanto possível, para evitar fazer qualquer declaração que pudesse parecer duvidosa ou exagerada, especialmente para aqueles de seus leitores que não estão familiarizados com as circunstâncias que até agora retardaram a civilização nesse país até então negligenciado."
Só um detalhe. Poyais não existia. Era um país fictício. Até aí tudo bem, J.R.R. Tolkien criou o mapa da Terra Média antes mesmo de começar a escrever "O Senhor dos Anéis".
Mas a ideia não era fazer literatura, mas dinheiro em cima de pessoas desavisadas. O autor do guia, o tal Strangeways, era um pseudônimo do homem que criou todo o esquema: o próprio Gregor, "cacique de Poyais", príncipe dessa terra fantasiosa na América Central.
O Golpe de Poyais, como ficou conhecido, foi, possivelmente, a mais sofisticada e criativa picaretagem da história. Uma nação forjada na mente de um estelionatário com uma vida cheia de aventuras e altos e baixos dos dois lados do Atlântico. Conheça Gregor MacGregor, o homem que arruinou centenas de famílias e até ajudou a criar uma crise na então maior economia do mundo.
De excluído da elite britânica a capitão insubordinado
O escocês Gregor MacGregor pertencia a um clã que, nos séculos 17 e 18, fora proibido pelo rei, Jaime 6º, de usar o próprio nome. Na época, o catolicismo, religião do clã, era perseguido na Inglaterra e na Escócia.
O banimento já tinha caído anos antes de Gregor nascer, mas essa característica de "forasteiro da sociedade", de "outsider do sistema", lhe caiu bem, e ele a reforçou. Quando adulto, MacGregor diria a quem quisesse ouvir que era descendente direto de um sobrevivente da frustrada e traumática aventura escocesa de tentar colonizar o Istmo de Darién, no Panamá.
Já falei do caso aqui. Se você acompanha a coluna há um tempo, deve se lembrar da história. Caso não conheça, recomendo a leitura, vai por mim: escoceses sem grana nem experiência suficientes querendo conquistar o naco de selva mais inóspito das Américas.
Seguindo a carreira do avô, brilhante militar, e do pai, capitão na Companhia Britânica das Índias Orientais, Gregor se lançou numa vida que o levaria a lugares muito distantes da Escócia. Com apenas 16 anos, era oficial do Exército Britânico. Em 1809, participou da Guerra Peninsular, como parte do apoio britânico aos espanhóis e portugueses que lutaram contra as tropas de Napoleão.
No ano seguinte, após desavenças com um superior, o jovem capitão acabou pedindo dispensa. Foi prontamente atendido, insubordinado que era.
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Quero receberEm 1811, sua esposa, Maria Bowater, membro de uma importante família, morreu. Na biografia "The Land that Never was: Sir Gregor MacGregor and the most audacious fraud in history" ("A Terra que Nunca Existiu: Sir Gregor MacGregor e a fraude mais audaciosa da história", inédito em português), o jornalista David Sinclair explica como a situação, em pouco tempo, ficou ruim para o homem.
Em menos de dois anos, ele perdeu sua fonte de renda, no Exército, e as costas quentes da família da finada esposa. Segundo Sinclair, MacGregor tinha poucas opções. Ficar noivo de uma outra herdeira (o que poderia enfurecer seus influentes ex-sogros) ou retornar à Escócia para administrar as terras da família (o que seria penoso, pois sua experiência era unicamente militar).
Retornar às Forças Armadas, dada a maneira como ele saiu, seria estranho e improvável. Então, as notícias que chegavam do Novo Mundo despertaram sua atenção.
De queridinho a desafeto de Simon Bolívar
MacGregor estava interessado em uma série de conflitos distantes, mas diretamente ligados às Guerras Napoleônicas: a luta pela independência nas colônias da América Latina. Ele vendeu suas terras na Escócia e zarpou para a Venezuela, um dos países que, de olho no enfraquecimento da Espanha (invadida por Napoleão) e influenciado pelos ideais de liberdade que ganhavam força no Ocidente, travou sua própria guerra para se libertar.
A partir de 1812, MacGregor lutou ao lado de venezuelanos e colombianos, rapidamente virou general e caiu nas graças de Simon Bolívar, o comandante da independência de boa parte dos países sul-americanos. Em 1815, resistiu a um cerco em Cartagena e liderou uma bem-sucedida retirada para a Jamaica, onde foi recebido como herói.
Em 1817, comandando algumas centenas de homens, MacGregor chegou a uma ilha chamada Amelia, na costa da Flórida, como parte do plano revolucionário de libertar a península dos espanhóis. Como podemos deduzir, não deu certo.
Se hoje quem vai à Disney precisa de visto, isso se explica, em parte, na curta vida das repúblicas que chegaram a ser proclamadas na Flórida. Em 1821, os espanhóis cederam o território definitivamente aos Estados Unidos.
Na ilha, MacGregor liderou a brevíssima República das Flóridas. Foi uma experiência emblemática para o aventureiro.
Nos seis meses que o micropaís durou, em vez de fortificá-lo e se preparar para um provável enfrentamento com os espanhóis, ele tratou de investir em símbolos para uma nação que, na prática, não existia. Criou bandeira, selos, moeda e até um código de honra.
Como selos são pouco úteis contra canhões, MacGregor foi escorraçado de Amelia. Então, em 1818, ele retornou a Londres para recrutar homens para as guerras de independência.
Na volta às Américas, passou por Haiti, Panamá e Colômbia. Foi um péssimo general, acusado de pirataria na Jamaica e de traição por Bolívar, que o condenou à forca caso pisasse no continente.
MacGregor, pelo visto, perdeu o jeito ou estava mais interessado em outras coisas. Em 1819, duas missões, lideradas por ele, terminaram em desastre, com voluntários das Legiões Britânicas abandonando seus postos.
O homem que em 1812 se casou com a bela Josefa Lovera, prima de Bolívar, agora não tinha mais o respeito do Libertador. Era hora de explorar novas terras.
De falso cacique a convidado de honra
Em 1820, o aventureiro escocês estava na costa da atual Honduras, em contato com o povo misquito - por isso a região acabou conhecida como Costa dos Mosquitos, e não por uma possível superpopulação de insetos. Descendentes de africanos escravizados náufragos e de indígenas da América Central, os misquitos tinham algo em comum com os britânicos: detestavam os espanhóis.
Os ingleses tiraram proveito disso ao reconhecer os líderes misquitos como reis. Não lhes davam poder algum, mas investiam nesses títulos de fachada na esperança de que os misquitos se opusessem com mais virulência a qualquer tentativa de colonização espanhola na região.
Funcionou, e os britânicos não precisaram investir muito. Os espanhóis não chegaram perto e, nos anos 1820, o único sinal da presença britânica na costa era um cemitério tomado pela floresta, segundo Sinclair.
Naquele ano, um desses reis misquitos concedeu a MacGregor um título com a posse de um território de 32 mil quilômetros quadrados. É uma área maior que Alagoas, ou quase a metade da Escócia.
De acordo com o "Dicionário Oxford de Biografias Nacionais", o rei, chamado George Frederic Augustus, vendeu a terra por um carregamento de rum e joias. Foi um acordo de bêbados, definiu o historiador Edward Chancellor em "Salve-se Quem Puder - Uma história da especulação financeira" (Companhia das Letras).
No ano seguinte, MacGregor estava de volta a Londres. As pessoas desconheciam seus fracassos recentes na América Latina e pouco questionaram quando ele dizia que recebera o título de "cacique", "um tipo de príncipe", do próprio rei da Costa dos Mosquitos, e que ele governava um novo e independente país chamado Poyais.
Dá para entender. A América do Sul dos anos 1820 e 1830 se assemelhava ao Leste Europeu dos anos 1990 em um ponto: novos países brotavam todo ano, surgiam nomes diferentes nos mapas, as fronteiras mudavam e pouco depois podiam ser riscadas e traçadas de novo. Era uma época de breves países, como as Províncias Unidas do Rio da Prata, a Grã-Colômbia, o Peru do Norte ou a República Rio-Grandense.
Se considerarmos que o dito cidadão médio europeu não sabe muito o que se passa na América do Sul e que esse contexto permitia certa estripulia cartográfica, a lorota de MacGregor podia encontrar ouvidos receptivos. Afinal, se em 2017 o ministro das relações exteriores da Polônia disse ter feito um acordo com a inexistente nação caribenha San Escobar, é bem plausível MacGregor, em 1821, ter saído por Londres dizendo ser príncipe de Poyais e as pessoas acreditarem.
Vejamos. "Um ex-militar britânico, que passou mais de uma década lutando ao lado das maiores lideranças sul-americanas, recebeu um título nobiliárquico local e acabou governando um desses novos e desprezíveis países que estão surgindo?" Uai, pode ser.
Gregor e Josefa eram um pacote completo para ter à mesa nos jantares mais interessantes e nas festas mais extravagantes de Londres. O apelo exótico do casal excitava as imaginações inglesas. Diziam até que ele descendia de alguma realeza indígena.
De mentiroso e estelionatário
Mas MacGregor não voltou ao Reino Unido só para contar vantagem. Ele estava em Londres para acompanhar a coroação do rei George 4º e sondar possíveis interessados em imigrar para a jovem e amiga nação de Poyais. Mostrava às pessoas uma cópia de um documento oficial emitido pelo governo do país, que dizia que ele estava em missão oficial à procura de interessados em carreiras civis e militares naquela pequena e rica democracia, sedenta por talentos estrangeiros.
MacGregor expunha aos interessados toda a estrutura política do país. Um Parlamento tricameral (modelo que caiu em desuso, mas na época era defendido até por Bolívar), o sistema bancário, os uniformes das Forças Armadas, brasão de armas, mapas com as principais cidades, rios e montanhas etc.
O guia impresso de Thomas Strangeways foi só mais uma dessas artimanhas. MacGregor dava entrevistas a jornais, fazia anúncios em cartazes nas ruas e encomendava baladas para cantar as maravilhas de Poyais - ou seja, uma espécie de jingle dos anos 1820.
A história era tão cheia de detalhes que ele convenceu muita gente. Um major chegou a oferecer sua bela propriedade para receber a família real de Poyais quando ela visitasse o Reino Unido.
MacGregor começou vendendo títulos de propriedade em Poyais por um valor aproximado ao de um dia de serviço de um trabalhador comum. Em 1822, ele já havia dobrado o preço e a demanda, mesmo assim, não esfriou.
Também vendia postos militares e títulos de nobreza. Providenciou o lançamento de um empréstimo poyasiano de 600 mil libras, com dividendos de 6%, com o apoio de John Perring, ex-prefeito de Londres.
No ano seguinte, cerca de 500 pessoas tinham comprado terras no país. Estavam investindo em algo que parecia promissor, em uma economia aquecida: também tinha muita gente investindo nas outras (e verdadeiras) nações recém-emancipadas na América Latina.
Coincidentemente, naquele mesmo ano de 1823, Honduras e Nicarágua, os países onde fica a Costa dos Mosquitos, integraram, junto com outros vizinhos, a República Federal da América Central. O novo país duraria até o fim dos anos 1830, quando foi repartido nas atuais repúblicas da região.
MacGregor, é claro, estava se lixando para esse fato. E estava enriquecendo. Só em 1822, faturou algo em torno de 200 mil libras, o que equivale, hoje, a 31,8 milhões de libras (ou R$ 240 milhões).
Mas as pessoas não compravam apenas para investir. Muitos estavam dispostos a cruzar o oceano e começar uma vida nova. Sete navios zarparam para Poyais com esse intuito.
O esquema ludibriava artesãos e comerciantes qualificados com passagem grátis, suprimentos e contratos lucrativos. Médicos e jovens cujas famílias compraram seu ingresso nas Forças Armadas de Poyais também ingressaram na jornada.
MacGregor conseguiu convencer um banqueiro londrino a assumir o Banco de Poyais e um sapateiro de Edimburgo a largar tudo para ser o sapateiro oficial da princesa de Poyais. A maioria dos que toparam viajar eram escoceses como esse pobre sapateiro - e como MacGregor.
As pessoas estavam tão empolgadas com a aventura que ficavam excitadas já no momento de trocar seu ouro e suas economias guardadas pela moeda de Poyais. O próprio MacGregor alimentava esse clima de deslumbramento ao cumprimentar os viajantes para lhes desejar boa sorte antes do embarque. Para o primeiro navio a sair da Escócia, ele anunciou que todas as mulheres e crianças viajariam de graça.
Cerca de 250 pessoas fizeram a travessia atlântica. Chegando lá, viram apenas selva, mar e indígenas nada amistosos com britânicos.
Passaram dois anos tentando sobreviver. Mais da metade morreu de doenças e outras complicações, como afogamento na fuga desesperada para Belize. O sapateiro oficial da princesa se matou com um tiro.
Das poucas dezenas que voltaram ao Reino Unido, muitas não atacaram MacGregor. Justificaram-se dizendo que não conseguiram encontrar Poyais com os mapas fornecidos.
Ou seja, a culpa do fracasso seria delas. Não é muito diferente de um coach sem nenhuma experiência em expedições de montanha que diz que você pode vencer todos os desafios impostos com base apenas na força de vontade, e que se você fraquejar a culpa é tão e somente sua. Então, você pode acabar acreditando nessa pamonhice criminosa, porque você já tinha comprado o discurso do charlatão. É um feitiço difícil de quebrar.
MacGregor dizia a seus compatriotas que Poyais poderia servir como uma reparação histórica ao fiasco de Damién, mais de um século antes. Afirmava que queria ver aquela terra povoada e colonizada por bravos e resolutos escoceses.
Um artigo na revista "The Economist" sugere que MacGregor talvez acreditasse em sua própria narrativa. Para Sinclair, ele ficou tão deslumbrado com a lorota de "cacique" e com a forma como a mentira cresceu que ele teria acabado tragado por ela e se desconectado da realidade.
Ou ele simplesmente não se importava com nada.
O esquema, que nasceu como um golpe inspirado e criativo, acabou virando um estelionato cruel e assassino. Ao lado de outros investimentos especulativos na América Latina, disparou o Pânico de 1825, uma bolha econômica que estourou na City londrina, faliu bancos ingleses e atingiu outras economias pelo mundo. "Até hoje, o empréstimo poyasiano continua sendo o único empréstimo para um país fictício lançado na Bolsa de Londres", escreveu Chancellor.
De golpista no Canal da Mancha a aposentado na Venezuela
Mas ainda faltavam provas concretas para incriminá-lo. Fugindo das suspeitas, MacGregor levou o golpe para a França, onde levantou mais centenas de milhares de libras.
Em 1826, fugiu da Justiça e deixou Paris. Insistiu mais um ano no golpe no Reino Unido e, enfim, decidiu que era hora de se aposentar.
Foi recebido com honras na Venezuela. Políticos o agraciaram como um herói da guerra de independência e lhe concederam cidadania, a patente de general e uma aposentadoria.
MacGregor morreu em 1845. Foi enterrado com todas as honras na Catedral de Caracas, em um funeral com a presença de lideranças políticas e militares e até do presidente, Carlos Soublette. Nos obituários, os jornais lembravam de seu papel na independência.
Para o biógrafo Sinclair, MacGregor cometeu a "fraude mais audaciosa da história". A "The Economist" concordou, mesmo com uma ressalva recente chamada Bernie Madoff, o homem que criou a maior pirâmide financeira da história em 2008.
"Em termos monetários, Madoff supera [20 vezes] MacGregor. Mas fraude é sobre criar uma falsa confiança e fazer as pessoas acreditarem em algo que não existe. Para alguns, como o Sr. Madoff, é a crença nas habilidades xamânicas do trapaceiro no mercado de ações. Para outros, como Charles Ponzi, é um esquema matemático à prova de falhas. MacGregor era muito mais ambicioso: ele inventou um país inteiro."
Ainda hoje, a área onde ficaria Poyais é inóspita e pouco habitada. Integra a Reserva da Biosfera do Rio Plátano, um patrimônio da Unesco no Caribe hondurenho ameaçado pelo desmatamento. Ao lado de duas reservas vizinhas, ele constitui a maior floresta da América Central.
Foi para lá, no meio da selva, que MacGregor convenceu centenas de pessoas a largar tudo o que tinham e que conheciam e começar uma vida nova.
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