'Colônia dos psicopatas': a ilha grega que escondeu segredo sujo da Europa
37º07'N, 26º51'L
Lakki, Leros
Kalymnos, Egeu Meridional, Grécia
O Dodecaneso é um grande arquipélago grego que fica mais perto da costa da Turquia do que de Atenas. Suas histórias e lendas remetem ao Ulisses da "Odisseia" e a Alexandre, o Grande, mas também são cheias de elementos não-gregos.
Cavaleiros cruzados, sultões otomanos, militares ingleses e burocratas italianos deixaram suas marcas quando dominaram essas ilhas. A maior e mais famosa delas é Rodes, mas é na pequena Leros, com seus moinhos, casario branquinho e dias ensolarados aos montes, que fica uma cidade única.
Os gregos a abandonaram, depois tentaram escondê-la e hoje querem que ela seja descoberta - ou pelo menos a parte mais bonita, tanto da paisagem quanto da história.
A cidade de Lakki é um testemunho, ao mesmo tempo, do gênio arquitetônico e da violência psiquiátrica do século 20.
Que lugar é esse?
Diz a mitologia grega que Ártemis, a deusa da caça e da vida selvagem, nasceu em Leros. Tucídides já falava do valor estratégico das baías da ilha em seu relato sobre a Guerra do Peloponeso, no século 5º a.C. Leros apoiava Atenas no conflito, mas acabou sob domínio de Esparta, e desde então sua proximidade com Atenas foi cheia de altos e baixos. Uma "relação tóxica", como não diziam os gregos.
Ao longo dos séculos, assim como as outras ilhas do Dodecaneso, potências estrangeiras diferentes a ocuparam. Na maior parte desse tempo, os otomanos dominaram o arquipélago, até que, em 1912, eles foram derrotados em uma guerra contra a Itália.
Os italianos eram os novos senhores do Dodecaneso, mas só na década seguinte, com a ascensão dos fascistas ao poder, eles trataram de investir pesado na região. A ideia era italianizar o arquipélago, solapar instituições gregas e fomentar a cultura e língua italianas.
Benito Mussolini sabia das qualidades militares de Leros, e por isso queria abrigar ali a Regia Marina, a Marinha Real Italiana, em seu plano de controlar todo o Mediterrâneo Oriental. Em 1923, ele enviou os arquitetos Rodolfo Petracco e Armando Bernabiti para projetar e construir uma cidade-modelo no porto da ilha a fim de abrigar milhares de italianos e suas famílias.
Petracco e Bernabiti representavam o racionalismo, um estilo arquitetônico que enfatizava linhas simples e desenhos funcionais, com ideias que valorizavam a razão. Influenciada pelo futurismo e o modernismo, e aproveitando que estava longe da vistoria impertinente dos políticos em Roma, a dupla concebeu Portolago, uma cidade com características particulares, diferentes dos padrões racionalistas encontrados na Itália fascista.
O arquiteto Anthony Antoniades explicou em um artigo a respeito que enquanto as cidades italianas racionalistas eram rígidas, monótonas e "injustificadamente monumentais", Portolago é diversa, inclusiva e imaginativa. Isso porque eles mesclaram o estilo com elementos vernaculares locais, segundo contou o historiador George Trampoulis à BBC, em 2018.
Em tempo: já falei de outra cidade italiana, Tresigallo, na Emília-Romanha, que é outra pérola escondida do racionalismo. Assim como sua prima grega, ela tem dimensões mais humanizadas, menos monumentais, menos "do jeito que ditador gosta".
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Quero receberPortolago nasceu com uma igreja austera, uma escola modernista mas com influências bizantinas, um cinema art déco com vista para o mar, casas com formatos cilíndricos ou cúbicos e amplos jardins. Não é todo dia que uma cidade planejada do tipo sai do papel.
No fim dos anos 1930, Portolago tinha cerca de 8 mil habitantes. Mas a Segunda Guerra Mundial enterrou qualquer esperança da dupla de ver a cidade crescer e prosperar.
Terminado o conflito, Petracco e Bernabiti retornaram à derrotada Itália. Os tempos eram definitivamente outros. Já não havia interesse pelo racionalismo e eles morreram desacreditados.
Tudo mudou também no Dodecaneso. As ilhas enfim retornaram ao controle grego, em 1947. Portolago ganhou um novo nome, Lakki, mas o interesse de Atenas pela ilha pareceu terminar aí.
O horror
De novidade, Lakki só ganhou o nome. A cidade foi largada, por causa de sua óbvia relação com a Itália. Ela não representava uma utopia arquitetônica, uma visão urbanista. Ela era um símbolo da ocupação fascista no arquipélago. A opressão política soterrou a pretensão artística.
Semiabandonada por décadas, Lakki só voltou a chamar alguma atenção no fim do século. E por um motivo infame.
Em 1989, uma reportagem do jornal britânico "The Observer" apresentava fotos de homens pelados e visivelmente maltratados. Desnutridos e vítimas de tratamento desumano, eram pacientes de um hospital psiquiátrico em Lakki.
Intitulada "Europe's guilty secret" (algo como "O segredo vergonhoso da Europa"), a reportagem caiu como uma bomba para o governo grego. O país, membro relativamente jovem da Comunidade Econômica Europeia (antecessora da União Europeia), precisou rever suas práticas de saúde pública e mental.
Leros era o destino final de centenas de pacientes psiquiátricos e com deficiência. Muitas vezes, instituições localizadas no continente enviavam essas pessoas para a distante ilha, localizada a uma hora de voo de Atenas, uma enormidade para um país pouco menor que o Ceará.
O escândalo ainda ajudou a desencobrir outros, que estavam esquecidos no passado. Logo após a Segunda Guerra, a Grécia mergulhou em uma guerra civil que durou três anos. Monarquistas derrotaram comunistas, e a partir de 1949 a repressão anticomunista foi forte.
O hospital psiquiátrico de Leros, que foi usado como prisão de dissidentes políticos na Guerra Civil Grega, voltou a ser palco de repressão durante a ditadura militar que tomou o país e extinguiu a monarquia nos anos 1960 e 70.
O Regime dos Coronéis, como ficou conhecido, transformou o manicômio e outros edifícios de Leros em "campos de reeducação" para comunistas e suas famílias. Cerca de 4 mil prisioneiros políticos foram enviados à ilha. Muitas vezes, eles dividiam os mesmos espaços com os pacientes psiquiátricos.
Em 1974, os civis retomaram o poder e a Grécia se redemocratizou. Os presos políticos ganharam liberdade, mas o hospital seguiu em funcionamento.
Alguns dos mesmos prédios erguidos durante os tempos fascistas serviam, 40 anos depois, para isolar essas pessoas. "Os pacientes estavam abandonados, como vira-latas. Não havia um plano terapêutico real, nenhum planejamento de integração nem contato com as famílias", descreve o jornalista Verdiana Garau, que morou em Leros, na revista digital "Tablet".
"Era uma triste prisão para homens tidos como inúteis para a sociedade. Foram exilados de hospitais em Atenas ou Tessalônica e enviados a uma ilha remota de almas náufragas."
Após o escândalo de 1989, o governo grego anunciou uma grande reforma em seu sistema de saúde. O hospital fechou as portas nos anos 1990, mas, nos anos 2020, o fantasma da "colônia dos psicopatas", como ficou conhecida, voltou com um novo semblante.
Em 2015, durante a crise migratória na Europa, o governo anunciou que criaria um centro de recepção para refugiados na ilha. Em 2021, a prefeitura apelou contra uma decisão de dobrar a capacidade do local, de mil para 2 mil pessoas.
Cerca de 200 refugiados viviam nas ruínas do antigo manicômio. É uma fatia significativa em uma ilha cuja população é de cerca de 8 mil.
Em Lakki, são apenas 2 mil habitantes. É nessa nova e delicada realidade que os moradores querem vender uma outra imagem da cidade.
Vida nova para Lakki?
Parte da arquitetura racionalista foi recuperada, mas muito se perdeu. À noite, a cidade se esvazia e os edifícios evocam uma certa tristeza, segundo a reportagem da BBC. "Caminhar pelas ruas nessa hora dá a sensação de que você está na locação de um filme antigo depois que as luzes se apagaram e todos os atores foram para casa."
Muitos prédios estão em ruínas, enquanto outros se descaracterizaram com o tempo. Recuperar Lakki é difícil, mas não impossível. Os italianos, que por muitas décadas não queriam se associar a nada que lembrasse o fascismo, aos poucos começam a dar mais atenção ao racionalismo.
Já os gregos, que por décadas trataram a ilha como uma latrina de desumanidade, um gulag escondido sob o sol do Mar Egeu, querem incluí-la em sua extensa lista de ilhas incríveis para mostrar ao mundo.
O governo de Leros até cogita trabalhar para candidatar Lakki ao título de patrimônio da Unesco. Mas é algo que só faria sentido se a memória de vítimas do fascismo, da ditadura grega, dos horrores manicomiais e da xenofobia e das crises de refugiados for respeitada.
É gente demais traumatizada por uma ilha cuja área equivale à de Pindoretama, Ceará.
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