Presente de Natal? O país onde o povo 'queima o presidente' no fim do ano
14º33'N, 90º43'O
La Concepción
Antigua Guatemala, Sacatepéquez, Guatemala
A turba furiosa, ensandecida pelos cortes na saúde e na educação, arrastou o então presidente da Guatemala, Alejandro Giammattei, até o centro da praça. Naquele 7 de dezembro de 2020, ferida e traumatizada após a passagem de dois furacões semanas antes, a multidão não aguentava mais tamanho sofrimento.
Era preciso expurgar demônios, trucidar governantes, deixar o ódio fluir. Atirar ao fogo todo o mal causado.
A pandemia chegara oito meses antes à Guatemala. Mais de 16 mil pessoas morreriam de covid-19 no país. E o presidente cortando gastos da saúde? Com coronavírus e furacão enlouquecendo e matando todo mundo?
Atearam fogo no presidente ali mesmo. Nele e também no diabo, no Super Mario, no Papai Noel, num unicórnio que estava dando mole e em umas renas, só para o fogo subir mais.
Tudo de brincadeira. No pré-Natal na Cidade da Guatemala, a capital do país, fogueiras divertem, espantam maus espíritos e servem como vitrine de manifestações políticas. Mas também causam polêmica com os perigos e a poluição gerada.
Que festa é essa?
Sobram especulações, mas faltam evidências quanto à origem do costume. Michael F. Fry, especialista na história do país, explica no livro "Historical Dictionary of Guatemala" ("Dicionário histórico da Guatemala", sem edição brasileira) que ela não deve ser muito antiga, porque não há documentação a respeito no período colonial.
A Queima do Diabo provavelmente começou no século 19, como uma evolução de outras festividades em que se acendiam fogueiras no país. Todo 7 de dezembro, véspera do dia de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, às 18h, o povo lança o demônio ao fogo.
A ideia, inicialmente, era celebrar a purificação simbolizada pela fogueira, que limparia e prepararia o espírito dos fiéis para a chegada da data santa e, logo na sequência, as festividades natalinas. Com o tempo, a festa ganhou novos elementos.
No século 20, cada vez mais gente deu à ideia de limpeza uma nova interpretação, mais literal. Na hora de queimar o diabo, passaram a queimar também lixo. Isso incluía jogar produtos químicos, plásticos de tudo que é tipo, pneus e até colchões no fogo.
Os óbvios danos ao meio ambiente e à saúde levaram a campanhas de conscientização no país. O hábito foi caindo em desuso, até que, para não matarem a tradição ao combaterem a poluição, os guatemaltecos mudaram a festa de novo.
Segundo o jornal local "Prensa Livre", nos anos 1990 surgiu a ideia de queimar piñatas com motivos diabólicos para manter viva a festa e desestimular as fogueiras irresponsáveis de lixo. Partir dos diabos para outros tipos de bonecos, com ou sem mensagem política, foi um pulo.
Talvez a festa não tenha tanta influência da cultura pop como o Año Viejo do Equador, que já foi assunto em outro post de réveillon do Terra à Vista. Mas a premissa é a mesma: queimar na rua e se divertir.
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Quero receberLogo vieram os políticos, com roupa de presidiário, chifres de diabo e outros elementos evidenciando a voz do povo. Além de Giammattei, o ex-presidente Otto Pérez Molina, preso por corrupção em 2015, também foi queimado na festa.
Cenário inspirador?
Este ano, a bela Antigua, ex-capital colonial e hoje patrimônio cultural da Unesco, incinerou um "diabo ecológico". O objetivo era denunciar os incêndios criminosos que ocorreram na região do Vulcão de Agua, a imponente montanha que aparece de cenário em tudo que é foto da cidade.
Além de homenagear os trabalhos das brigadas de incêndio, a Queima do Diabo de Antigua acabou lembrando a própria história local. A primeira capital guatemalteca foi fundada ali, em 1541, mas antes ela ficava em outro ponto. Precisou se mudar e começar de novo porque fora destruída pelo vulcão naquele ano.
O fogo traz renovação. Às vezes na forma de tragédia de proporções bíblicas, às vezes em festas populares.
Eis o bem-humorado texto que acompanhava a efígie queimada em 7 de dezembro:
"Vivemos literalmente (sic) em chamas, como se alguém tivesse confundido Hunahpú (nome maia do vulcão) com uma tocha olímpica. Enquanto isso, os humanos - essas criaturas tão criativas quanto destrutivas - decidiram que arrancar os cabelos verdes do vulcão era uma ótima ideia. E, claro, lá estávamos todos, observando como a flora e a fauna da região brincavam de esconde-esconde com o fogo, mas sem se esconder muito bem.
Felizmente, apareceram os verdadeiros heróis: socorristas e grupos de apoio que, sem selfies, sem discursos grandiosos e sem esperar premiações, se jogaram no ringue. Esses são os bons, os que não se prestam à corrupção nem procuram likes enquanto apagam incêndios com um balde numa mão e o coração na outra."
Um bom Natal para quem for natalino, e um ano novo com menos queimadas na Guatemala - e também por aqui.
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