Maior ilha do mundo tem Ano-Novo 'alien' de sustos e frio na noite eterna
69º'3'N, 51º06'O
Ilulissat
Avannaata, Groenlândia (território autônomo da Dinamarca)
Não é que precisamos de muita imaginação para pensar em como é o Ano-Novo no extremo-norte do planeta. Mas se você viu o Natal da Jodie Foster em "True Detective: Terra Noturna" (disponível na Max), consegue ter uma ideia do quão desafiadores para a saúde mental são aqueles dias seguidos em que o sol permanece abaixo da linha do horizonte.
Nas regiões acima do Círculo Polar Ártico, é assim mesmo. Uma longa, congelante e tétrica noite. E, em alguns lugares, pode ser ainda mais aterrorizante. Ou divertida, vá saber.
Na Groenlândia, por exemplo, uma celebração mistura Halloween com Natal e junta elementos tradicionais dos inuítes com aqueles trazidos pelos dinamarqueses cristãos.
É um período de Ano-Novo tão diferente do nosso que parece alienígena, e o barato é que, no principal destino turístico local, o evento é levado a sério.
Que lugar é esse?
Ilulissat é uma cidadezinha uns 350 quilômetros acima do Círculo Polar Ártico, localizada no oeste da maior ilha do mundo. Ainda que sua população seja de apenas 5 mil almas, ela é a terceira mais populosa da Groenlândia.
Ao todo, a ilha tem 57 mil habitantes, o que dá uma densidade demográfica de 0,14 pessoa por quilômetro quadrado. O Amazonas, estado com a menor densidade demográfica do Brasil, tem uma taxa de 2,53. Perto da Groenlândia, o Amazonas é o encontro do shopping em 23 de dezembro com o supermercado do litoral em 30 de dezembro.
Ilulissat foi fundada no século 18 com o nome Jakobshavn. Era uma referência ao entreposto comercial que havia ali, pertencente à companhia de Jacob Severin.
Essa empresa explorava a ilha nos primeiros anos de colonização dinamarquesa. A Groenlândia, que fica entre o Canadá e a Islândia, é, até hoje, parte integrante do Reino da Dinamarca. Tem certa autonomia política, mas pertence a Copenhague. Nem na Fifa, que é mais "mãezona" que a ONU nesse aspecto, a Groenlândia tem reconhecimento.
Mas a maior liberdade que ela ganhou com o passar do tempo significou, também, uma valorização da cultura local. Isso significou a mudança de alguns nomes. Jakobshavn virou Ilulissat, palavra que em groenlandês quer dizer "iceberg".
Uma bela escolha. É que ali pertinho fica o monumental fiorde de gelo Ilulissat, patrimônio natural da Unesco. Trata-se de uma das geleiras mais ativas do mundo, movimentando-se a uma taxa de 20 metros por dia, o que cria um espetáculo grandioso com o ruído do degelo e o vento glacial envolvendo o fiorde congelado.
Por isso, Ilulissat é o principal ponto turístico da Groenlândia. Mas ela tem outras atrações para aqueles que enfrentarem seu inverno.
Que festa é essa?
Quem quer se aventurar a passar as Festas na cidade, precisa olhar o calendário. O auge não é 24 nem 31 de dezembro, mas 6 de janeiro.
É dia de "mitaarfik". Fantasias, doces, diversão, sustos, performances e algazarra tomam a cidade. Nessa data, que também celebra os Reis Magos no cristianismo, os "mitaartut" saem às ruas com máscaras e trajes em níveis variados de investimento e terror.
É o jeito mais groenlandês de passar o Ano-Novo. Roupas de baixo orçamento, mas potencialmente aterrorizantes, ainda mais quando se leva em conta o cenário.
Pense que você pode topar com essas figuras na escuridão da noite eterna. Criaturas fantasmagóricas, vestindo peles de animais como focas, empunhando correntes e arpões, sujas de fuligem, ofegantes e se agitando, mas sem emitir sons.
Isso porque as fantasias servem para assustar mas também para manter o anonimato. A brincadeira é justamente adivinhar quem são as pessoas. Além de se fantasiar, a pessoa não pode falar. Em comunidades tão pequenas, a identificação pode ser difícil, mas não impossível, já que ninguém é anônimo como em uma metrópole.
Em algumas cidades, o jogo é mais lúdico e convidativo para as crianças. Os "mitaartut" visitam as casas e, se ninguém conseguir identificá-los, ganham doces. Caso sejam desmascarados, as crianças pegam as guloseimas.
Já em Ilulissat, os sustos e pegadinhas são mais intensos. Ainda mais porque, nessa época do ano, não se sai muito à rua. Na escuridão gélida, os fanfarrões fazem a festa com os mais desavisados.
"É fácil se assustar quando você se vê cercado por eles", disse um habitante local ao site "Atlas Obscura". Alguns "mitaartut" vestem grandes asas sujas e colocam preenchimentos sob a roupa para parecerem maiores.
A tradição teria começado há cerca de 200 anos e estaria ligada a Sedna, a deusa do mar na mitologia inuíte. O ritual aplacaria seu espírito para que ela liberasse a temporada de pesca de focas e desse uma trégua no clima inclemente.
O "mitaarfik" coincide com o encerramento da temporada natalina, que começa no Advento, o período de quatro domingos que antecede a véspera de Natal. É uma época especial na Groenlândia, com muitas tradições adaptadas e misturadas, como sempre acontece no feriado.
Nessa imensa ilha que, há séculos, não tem árvores nativas, a madeira era importada. Isso incluía as árvores de Natal. Quem não tinha como pagar por uma, improvisava com uma vassoura com folhas pregadas. A invenção das árvores de plástico deixou essa pequena tradição no passado.
É um Natal inusitado. Tem luzinhas, comilança, missa. O frio é de verdade (e como!), mas a árvore pode ser de mentira. Papai Noel mora na Groenlândia, pelo menos segundo os dinamarqueses, mas seu caráter bonachão precisa dividir espaço com os estranhos "mitaartut".
Se há dúvida quanto à nacionalidade do velho presenteador e suas renas (a Lapônia finlandesa é a terra natal mais celebrada no resto do mundo), os outros bichos de trenós na cidade são um orgulho nacional: em Ilulissat, quem comanda esse tipo de transporte, muito importante há séculos na ilha, é o cão da Groenlândia, raça local parente do husky siberiano.
Para quem gosta de abraçar desconhecidos no Réveillon, nada mal começar o ano brindando com um bicho desse.
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