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Opinião

Quando o teto de um lugar como a 'igreja do ouro' cai, o Brasil todo desaba

12º58'S, 38º30'O
Igreja e Convento de São Francisco
Pelourinho, Salvador, Bahia

Envelhecer também é vislumbrar novas e estranhas formas de morrer. Não me refiro a tragédias mais mundanas, como ser atropelado, sofrer um acidente de carro ou o idoso que tropeça no banheiro. Tampouco as mortes estúpidas em que a vítima teve papel preponderante, como a turma das selfies de precipício, semissuicidas exterminados pela vontade de aparecer, ou os vencedores do Prêmio Darwin.

Falo das mortes em que a pessoa apenas estava em hora e lugar retumbantemente errados. Caso das vítimas da queda da ponte entre Tocantins e Maranhão no fim do ano passado ou de um espanhol cujo apartamento foi atingido por uma placa de uma tonelada disparada pela explosão de uma fábrica a quilômetros de distância.

Quem nunca havia pensado na possibilidade agora pode começar a ter medo ao passar por cima de uma ponte (ou por baixo dos viadutos paulistanos, que também deram trabalho em anos recentes). Ao ouvir histórias do tipo, você passa a imaginar a morte aparecendo das formas mais estranhas e originais, mesmo quando tudo parece seguro.

Na semana passada, houve mais um exemplo do tipo. Uma turista paulista morreu em Salvador, atingida pelo teto da igreja que visitava. Quem já se imaginou morrer assim? Quem, após acompanhar o episódio e se solidarizar com a família da mulher, agora vai pensar duas vezes antes de entrar em um edifício turístico antigo?

Confesso que, quando vi a primeira notícia sobre o acidente, acreditei, ingenuamente, que o noticiário daria total atenção ao assunto, deixando os bonés em Brasília e as molecagens em Washington que vinham dominando o debate nos últimos dias para segundo plano. Aquele seria o nosso incêndio de Notre-Dame.

"Inocente, sabia de nada", diria um certo baiano. Foi só um destaquezinho aqui, um resumo acolá, depoimentos, cobranças e a velha sana de apontar dedos, de xingar o "governo do amor" ou o antigo governo, aquele de quem não escondia que pensava que arte e cultura são coisas de vagabundo.

Agora o acidente nem é mais notícia. Nossa rotina de pouco caso com o patrimônio segue à toda. Nada está seguro. Este é o país que, em 2018, conseguiu a proeza de ter sua mais antiga instituição científica destruída apenas com negligência e falta de recursos, e não em um incêndio criminoso ou bombardeado em uma guerra, que é como esse tipo de calamidade costuma acontecer.

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Desta vez, o patrimônio atingido não foi um casarão histórico mineiro localizado em área de risco de inundação. Foi mais surpreendente.

Uma das joias de um dos polos turísticos mais importantes do Brasil, localizada no centro de um Pelourinho revitalizado e hiperpoliciado. Um tesouro arquitetônico, ápice de esplendor de um centro histórico que é patrimônio da Unesco.

Uma das igrejas mais bonitas do mundo. Ainda assim, se desmanchou e não demos tanta bola.

"Ah, mas a igreja mais famosa do planeta, e uma das mais bonitas, pegou fogo. Isso pode acontecer até em países ricos!"

Claro, Notre-Dame mostrou que sim. Logo em seguida, recebeu bilhões em doações. Só a brasileira Lily Safra doou 20 milhões de euros.

Longe de mim criticar trilhardário que investe em patrimônio. Como resumiu uma amiga, antes rico torrando dinheiro para patrocinar a cultura do que indo para o espaço e só para dar meia-volta. Mas, se apenas 11 dias depois ninguém mais fala a respeito do ocorrido em Salvador, como será, e quanto tempo durará, a restauração da Igreja de São Francisco?

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Muito disso passa pelo fato de que pouco sabemos sobre a "igreja do ouro". Ela é muito mais do que os 800 quilos de metal dourado usado em sua decoração. Muito mais que uma das sete maravilhas de origem portuguesa, seja lá o que isso queira dizer.

Que lugar é esse

Convento São Francisco, em Salvador
Convento São Francisco, em Salvador Imagem: Getty Images

Fundado em 1587, o convento foi destruído durante a invasão holandesa em Salvador. Em 1624, a capital portuguesa nas Américas foi bombardeada e saqueada, e o edifício sofreu as consequências da luta armada.

O "Livro dos Guardiães do Convento de São Francisco da Bahia (1587-1862)", organizado pelo frei Venâncio Willeke e publicado em 1978, fala do episódio. Segundo relatos da época, os holandeses ocuparam o convento, danificaram a estrutura e forçaram os frades franciscanos a abandoná-lo.

Após a expulsão dos invasores, os religiosos voltaram ao local e deram início à reconstrução. O edifício que chegou ao nosso tempo é do século 18. A nova igreja, concluída nos anos 1720, ficou em obras até 1782, e o claustro, que ganhou o mais importante trabalho de azulejaria portuguesa no Brasil, ficou pronto em 1752.

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Segundo um artigo da historiadora Maria Helena Ochi Flexor, autora de livros sobre a São Francisco e outras igrejas e conventos da Bahia, só a decoração interna levou mais de 25 anos. Todas as obras foram patrocinadas pela sociedade baiana.

Hoje, quem a visita e não repara no desbunde está doido das ideias ou não largou o celular durante a viagem inteira. É uma overdose de detalhes e entalhes por todo canto, não tem uma fresta sem ornamento, um pedacinho sem enfeite.

Ou, como um cronista franciscano em 1930, frei Sinzig, escreveu em palavras muito melhores que as minhas: "O conjunto não permite que a vista descanse nesse ambiente feérico, exibindo uma exuberante riqueza de arte aplicada à igreja. Dizia-se que a motivou o conceito então em voga, de que para o culto divino todo o ornato seria pouco."

Graças a essa mentalidade, mesmo um convento de franciscanos, que pregam a humildade extrema, podia ostentar toda essa arte coberta de ouro. As grandes intervenções realizadas no século 19 por missionários alemães até tentaram reduzir um pouco isso.

Não conseguiram. E ainda foram criticados por Jorge Amado. Em 1945, ele escreveu em "Bahia de Todos os Santos: Guia de ruas e mistérios":

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"E o vulto negro da Sé, as pedras caindo, matando gente, a História cheia de bolor, ninguém mandando conservar a igreja sobre todas preciosa. Dinheiro era para a Igreja de São Francisco com sua ourama e seus padres alemães que depois se revelariam a flor da quinta-coluna em terras da Bahia."

Nesse trecho, além de espinafrar ironicamente a tentativa germânica de impor austeridade ao espírito barroco e festivo explícito do interior da igreja, o genial baiano explicita que a luta pela preservação do patrimônio é antiga, assim como o perigo que a falta de conservação representa às pessoas. À época, era a Catedral-Basílica Primacial de São Salvador que tinha "as pedras caindo, matando gente".

Na mesma obra, o escritor fala de um sujeito peculiar que abordava os frequentadores da igreja:

"Um pequeno imbecil, troncho, de olhos esgazeados e voz pastosa, palavras cortadas, vende folhetos religiosos aos visitantes. Parece fugido de um romance antigo, novo Quasímodo, aleijado, deformado, de cor amarelecida, olhando com avidez os níqueis que recebe. Dentro da maravilha da igreja ele é ainda mais absurdo e impressionante."

Impressionado ficou Mattijs van der Port, professor de religiosidade popular na Universidade de Amsterdã. Absurdo, e "um pouco envergonhado", foi o jeito que ele escolheu para abrir um artigo a respeito da igreja, dizendo que, mesmo já tendo visitado o templo antes, ele sentiu os mamilos enrijecerem ao adentrar a "tempestade dourada", com sua "esmagadora e rodopiante confusão de ornamentos desordenados".

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Era essa a igreja frequentada, em 1966, por Dona Flor, aquela dos dois maridos, das obras raras que se tornam clássicos multimídia, primeiro na literatura, depois no cinema e na TV. Trinta anos depois, eram da São Francisco os entalhes angelicais (usados como contraste com a brutalidade rítmica) que apareciam no clipe de "Roots Bloody Roots", a música que colocou o Sepultura no topo do heavy metal mundial.

Apenas dois exemplos para dar uma amostra da amplitude e do alcance desse prédio na cultura brasileira. O teto se desmanchou, matou uma pessoa, feriu tantas e, nossa, mas já faz tanto tempo, que assunto velho, a gente mal se lembra.

Em um artigo publicado no livro "O Barroco na América Portuguesa", o arquiteto Rodrigo Espinha Baeta explica o jogo de luzes, sombras, dourados e excessos do interior da igreja: "Ao adentrar o edifício o que se absorve é o reflexo dourado das superfícies e espaços chamejantes que invadem todos os contornos da cavidade interna".

Para ele, são "organismos cintilantes em absoluta sintonia com os painéis de azulejaria portuguesa dispostos nos dois lados da capela-mor, mas em grave contraste com as complexas balaustradas negras espalhadas regularmente pela nave. Tudo dramatizado pela presença escassa da luz".

Segundo Baeta, "o interior de São Francisco também se coloca como um acontecimento ligado à apreensão dramática barroca da cidade de Salvador". Jorge Amado reforçou, em sua obra, algo que vinha de século antes: a conexão do edifício, desde seu interior, com a urbe.

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Se há Carnaval no céu, devia ser assim.

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