A cada semana, um novo comunicado tenta dar conta de dizer, de forma direta e um tanto oficialesca, que mais um restaurante fechou.
"É com muito pesar que comunicamos", dizem as notas, para antecipar que a pandemia "tornou a operação inviável no formato ao qual nos dedicamos", que "o ciclo chegou a seu fim", que "não há segurança nem condições financeiras para prosseguir agora".
Levantamento realizado pela ANR (Associação Nacional dos Restaurantes) no final de junho apontou que 35% dos bares e restaurantes fecharam lojas permanentemente no país.
Até o final da pandemia — que não temos ideia de quando vai encerrar — outros estabelecimentos devem aumentar ainda mais essa porcentagem.
Mas para além dos números da economia e do fim de vagas oficiais de empregos em um setor já tão tomado pela informalidade, os restaurantes que fecham levam consigo uma parte da nossa gastronomia — que corre o risco de se perder sem eles.
Caldo para restaurar
Nossa evolução como sociedade está ligada à dos restaurantes, desde que eles surgiram na Paris do final do século 18 para servir "caldo restaurador" para doentes e debilitados. Vem daí seu nome, aliás.
No decorrer das décadas, eles evoluíram, se tornaram espaços para oferecer comida a viajantes famintos, lugares para famílias terem suas refeições fora de casa, templos para apreciação da gastronomia.
Constituíram-se, definitivamente, como um dos mais importantes palcos da nossa vida: quem é que não começou um relacionamento na mesa de um restaurante? Comemorou ali suas maiores conquistas? Reuniu-se com as pessoas mais queridas naquele bistrô do bairro?
Os restaurantes foram concebidos para uma íntima e significativa interação social, que é compartilhar a refeição com alguém, num ambiente público. Em tempos de medidas de distanciamento, eles perdem um bocado seu sentido social.
Memória culinária
Mas perdemos ainda mais nós todas as vezes que um deles se fecha para não mais abrir. Não apenas pelas memórias que levam (esses momentos de celebração dos quais se tornaram testemunha), mas sobretudo pelo que representam como valor cultural de uma cidade, de um país..
Olhar com atenção o cardápio de um restaurante é uma forma de entender até os ciclos de imigração que ajudaram a definir a cultura culinária daquele local onde ele está, os hábitos à mesa que foram adotados por seus frequentadores, o painel gastronômico que ele ajudou a definir.
Em São Paulo, por exemplo, cidade conhecida pela sua diversidade alimentar, alguns restaurantes tradicionais são a única prova ainda viva de alguns pratos que se tornaram icônicos na cidade por algum momento.
Por três anos, percorri dezenas deles para contar a história da gastronomia da cidade a partir das histórias dos donos desses estabelecimentos, de suas receitas, de suas criações que reuni em um livro sobre o tema.
E aprendi que muitos deles são guardiões de pratos que ajudaram a definir nossa própria biografia à mesa.
Por exemplo, o Tatini, aberto em 1954, é um dos únicos a servir o steak à Diana, um escalope de filé temperado e flambado no salão, em frente do cliente, que se tornou um clássico da gastronomia mundial.
Se ele fechar as portas, o prato corre o risco de morrer definitivamente na cidade, junto provavelmente com o "serviço à mesa" à moda antiga, do qual é um dos poucos representantes atuais.
Receitas icônicas
Por isso, o encerramento em julho do Marcel, restaurante francês inaugurado em 1955, é tão representativo nesse sentido. Vindo da Lyon, onde sua família possuía uma confeitaria, Jean Durant teve a oportunidade de comprar um bistrô em SP para chamar de seu (ainda que com o nome do ex-proprietário).
Por três gerações, o restaurante se manteve na mesma família: passou por crises econômicas, ditadura, muitas mudanças na cena da gastronomia e se manteve firme. Mas aí veio a pandemia?
O Marcel popularizou clássicos franceses como os Escargots à la bourguignonne e o Steak Tartare, mas foi a receita de souflé de Durant que fez do restaurante um clássico absoluto na cidade, introduzindo a receita a novas gerações — e mantendo-a atemporal diante dos modismos gastronômicos.
Foi em restaurantes que os paulistanos provaram pela primeira vez a pizza trazida pelos imigrantes italianos, que conheceram a cozinha japonesa tradicional, que se deliciaram com o beirute, sanduíche de inspiração árabe que, dizem os registros, ter nascido em São Paulo.
Assim, aliás, como o bauru, receita de lanche imortalizada pelo Ponto Chic, que depois virou até sabor de salgadinho de supermercado. A mesma coisa aconteceu no Rio de Janeiro, em Nova York, em Buenos Aires.
Pratos e receitas que nascem em estabelecimentos dessas cidades e que correm o risco de se extinguir com a pandemia. Por isso, repito, restaurantes não são apenas empresas, e seu papel na sociedade é mais do que aplacar fomes e gerar empregos.
Ícones culturais
Eles são ícones culturais imprescindíveis não apenas pelas interações sociais que propiciam (quem aí não está morrendo de saudades de voltar a sentar em um deles?), mas sobretudo pelo patrimônio culinário que representam, por definirem também o panorama de uma cidade, de um bairro, de uma vizinhança.
A pandemia coloca em risco tudo isso: outras casas tradicionais de São Paulo, como o PASV, na Avenida São João, e o Itamarati, no Largo São Francisco, também comunicaram seus fechamentos.
Mesmo restaurantes mais novos, que ajudaram a criar um recente fluxo gastronômico para bairros mais afastados (e redefinir, portanto, o urbanismo da cidade) como o Capivara, também seguiram o mesmo caminho.
Quando um deles fecha, todo mundo é afetado, não apenas seus donos e frequentadores. Da vitalidade urbana ao turismo, muitos são os segmentos impulsionados pelo fluxo que os restaurantes geram.
São questões de ocupação do espaço, de segurança pública, de urbanismo, de economia, de cultura. Mas sobretudo de patrimônio culinário, algo que a atual crise do novo coronavírus pode afetar de forma definitiva — e sem volta!
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