O que é ser do Sudeste: "Explosão de sotaques, sabores e possibilidades"
Sempre demoraram a me reconhecer carioca. Só depois de alguns chiados e alguns tu vai, tu foi, tu me ligou, tu já quer ir embora? Adivinhavam: "carioca". Mas, se você marcar comigo 19, saiba que 18h55 eu estarei lá. A fama existe, mas também as exceções.
Nasci e cresci na Tijuca. Pai carioca, porém avô pernambucano, biso gaúcho, bisa baiana. Minha mãe nasceu sem querer em São Paulo, mas cresceu no Rio, avós maternos capixabas. Isso aqui ô-ô, é um pouquinho de Brasil iáiá. Amava aula de geografia, e pirava em mapas quando criança. Uma vez, no clube, apareceu um cara bem galã, cujo nome era Atlas, e eu, com meus 10 anos, fiquei completamente boba em pensar que o nome de alguém era o meu livro favorito da escola. Atlas.
Amava um brinquedo de encaixar as regiões dentro do desenho do mapa do país. O Tocantins era um estado novíssimo e eu me maravilhava encaixando partes e sonhando: Será que algum dia eu vou à Amazônia? Coisas do tipo. Por ali eu entendi um pouco mais o que era ser do Sudeste. Meu avô pernambucano nos visitava às vezes, e meu nome até mudava. De Lêtchícia, virava Lééétîcîa, eu amava. Minhas primas capixabas me perguntavam "Mas você tem coragem de sair no Rio à noite?". Eu tinha, e minha prima ainda não tinha tomado uma bala perdida em plena noite de Natal da família tijucana. Tudo bem com ela, felizmente. E eu continuo saindo à noite (não na pandemia). A gente sabe do horror, mas a gente continua. O Rio é brabo, o Rio é mágico. Mas até confirmar meu caso de amor, precisei passear.
Conheci o Espírito Santo e Minas Gerais, primeiro pelas beiradas. Meus avós maternos eram de Cachoeiro de Itapemirim, cidade a umas duas horas de Vitória. Foi em Cachoeiro que ouvi seresta pela primeira vez. Foi em Meaípe e Guarapari que eu percebi que a axé music ia ganhar o mundo (no Rio, o pagode ainda reinava soberano). Foi em Marataízes que aprendi a comer moqueca. Capixaba. Só depois veio a capital, Vitória. E suas belas praias, e o pulinho até Vila Velha. Lá descobri mais sobre minha família. Foi paixão.
Com Minas Gerais também foi assim: capital só depois. Mamãe inventou de fazer o passeio das cidades históricas. Na época foi um pouco difícil. Desculpa, Minas. Meu pai e minha mãe fascinados com Aleijadinho, as três crianças querendo aventura (não éramos levados, por isso eles tentaram a viagem? risos). Então, em São João Del Rey, quando entramos num carrinho de uma mina desativada, aí, sim, gostamos mais do que nas incontáveis igrejas. Aprendi coisas, não há dúvidas, mas acho que aproveitaria mais indo agora. (Oi, Vacina, tudo bem?) Mas admiro a audácia materna. E já amávamos o Clube da Esquina, a comida — minha nossa, a comida! Além de tudo, andamos de trem, o que, pra mim, foi o ponto alto da viagem, não consigo compreender a falta de ferrovias nesse país.
Anos mais tarde, inventei de acampar muito em Minas: São Tomé das Letras, Aiuruoca, Ibitipoca. Fiz amizades, renovei minha fé nas águas doces e vi cores no céu inacreditáveis. Belo Horizonte demorou ainda uns anos pra ser desbravada, acho que foi só quando fui a trabalho e pude entender o jeito, o charme, a desconfiança, a cachaça, o mexidinho. Também paixão.
Com dez anos, fiz um passeio escolar: passar três dias em São Paulo. Você ia na Cidade da Criança, no Simba Safári e num parque de ondas. Minha primeira vez em São Paulo, quem diria, entrei numa piscina que emulava ondas. Amei viajar com as pessoas do colégio, sem família por perto, embora já ali sentia (e confirmava) uma vibração diferente, de não fazer muito parte do rebanho e sempre preferir algum desvio. Não fez sol nenhum dia, e eu pensava que São Paulo era assim sempre.
Minha segunda vez é mais emocionante porque já mostra meu furor com a cidade. Soube que PJ Harvey faria um show no saudoso Tim Festival. Resolvo ir sozinha vê-la. Pego um ônibus no horror que é a rodoviária do Rio. Naquela época, sempre passava um filme. Tenho 22 anos e pouca noção de vida, mas sou muito empolgada. "As Pontes de Madison" começa na micra televisão do ônibus. A Dutra na janela e a mulher ao meu lado, talvez com minha idade agora, começa a chorar com o filme. Trocamos uma ideia profunda sobre o amor. Não sei seu nome, não sei seu rosto, mas chegamos na rodoviária de São Paulo, aquele MUNDO, e agora não tem tia da escola pra me ajudar, agora sou eu e eu, e "As Pontes de Madison" dentro do meu coração.
Lá vou eu, mochila e vida, entender o que é um metrô com mais de duas linhas. Amor e horror sem volta. Já tentei morar em São Paulo, mas já entendi que alguns amores são melhores quando são visitas. Não posso ser lá, só posso estar. Paixão idem.
Sou fascinada pelo Rio, mas consigo despertar da hipnose que de vez em quando me assola. Mesmo sendo pontual, sou a pessoa que vai mergulhar antes de uma reunião. Com uma família empolgada por viagens, rodamos bem o estado do Rio (achava mais forte chamar Guanabara) e da Serra ao Mar, confirmei sempre que há algo de fato onírico no sudeste desse país tão continental.
Explosão de sotaques, sabores, possibilidades, sons, gírias, modus operandis. Paixão. Também paixão. Paixão idem. Confirmação da paixão. Virou amor.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.