Mato Grosso do Sul é o caçula dos vizinhos do Centro-Oeste: Mato Grosso, Goiás e Distrito Federal. Nos últimos tempos, cansada de ser confundida com os amigos do "Norte", a população criou um bordão que é gritado a plenos pulmões quando erram seu nome: "Do Suuuulll".
Geralmente, quando políticos, artistas e palestrantes vêm dar as caras por aqui, logo são aconselhados a não confundir os estados que até 1977 eram unos: "É Mato Grosso DO SUL, não esquece!"
É que, para quem vive por aqui, fica nítido que o sul-mato-grossense tem sua própria cultura, seu jeito e suas manias, seja na capital Campo Grande ou no interior.
O bordão "Do Sul" é um grito de alerta. Para mim, que cheguei do Rio Grande do Sul para cá em 1979, aos 10 anos de idade, aprendi logo que a mistura é a base de tudo por aqui. Provavelmente, em nenhum outro lugar se aprecia a tríade churrasco-mandioca-shoyu, reunindo no mesmo prato as influências das gastronomias gaúcha, indígena e japonesa.
É fácil notar também que Mato Grosso do Sul é o Estado mais paraguaio do Brasil, com a maior colônia do país.
A maioria das 79 cidades de MS está na faixa de fronteira com o Paraguai e os hábitos dos sul-mato-grossenses confirmam a herança paraguaia, como compartilhar diariamente o tereré bem gelado em uma roda de amigos, falar várias expressões em guarani e comer todos os dias a chipa, espécie de "pão de queijo paraguaio".
Para se ter uma ideia, eu mesmo fui muito mais vezes para Assunção do que para Cuiabá ou Brasília, por exemplo. A capital paraguaia, onde me sinto realmente em casa, fica mais perto de Campo Grande do que São Paulo.
Não dá para esquecer que as músicas mais famosas e populares de compositores sul-mato-grossenses carregam uma forte herança dos ritmos paraguaios da polca e da guarânia.
"Trem do Pantanal", de Paulo Simões e Geraldo Roca, conhecida na voz de Almir Sater, é uma guarânia e já foi eleita como uma espécie de hino não oficial do Estado.
Aliás, esta canção que fala do trem que ia de Campo Grande a Corumbá, passando bem no meio do Pantanal, também faz lembrar que o Mato Grosso do Sul é um local de passagem para vários lugares e entre eles um dos mais famosos da América do Sul: Machu Picchu, no Peru.
É só atravessar a fronteira em Corumbá para a Bolívia e embarcar em um trem até Santa Cruz de La Sierra. Dali pode-se ir até La Paz de avião, pegar um ônibus para Cusco, passando pelo Lago Titicaca, seguir para Águas Calientes e estarás aos pés das montanhas sagradas onde está a sensacional cidade inca, declarada Patrimônio Mundial da Humanidade.
Percorri exatamente este roteiro com meus parceiros Jerry Espíndola e Márcio De Camillo, do trio Hermanos Irmãos, em 2016, refazendo o mesmo caminho que Geraldo Roca e Paulo Simões traçaram em 1975, quando fizeram "Trem do Pantanal". Aproveitamos para registrar a viagem e produzir um clipe com uma nova versão da canção.
Corumbá tem esta conexão com os Andes, mas também guarda uma ligação histórica pelo Rio Paraguai com Cuiabá, a alegre e festiva capital mato-grossense.
Calorenta por natureza, estar na cidade cuiabana é sentir a hospitalidade daquela gente com sotaque próprio, que adora uma cerveja, um bom papo e já cultiva e molda uma identidade própria desde os 1700, quando os bandeirantes acharam ouro naquelas bandas.
Um dos itens identitários mato-grossenses que mais me atrai é o rasqueado cuiabano, uma adaptação musical influenciada pela música paraguaia e que se mistura com o folclórico cururu e siriri. Diversão garantida e baile animado na certa.
Impossível também ir a Cuiabá e não chegar até Chapada dos Guimarães, este lugar mágico. Seu ponto turístico mais conhecido, a Cachoeira do Véu da Noiva, realmente impressiona quando visto de perto com seus 80 metros de queda d'água.
É interessante notar a produção de artes visuais em Cuiabá, com o surgimento de muitos talentos na área desde os anos 1970, comandado pelo pintor Humberto Espíndola e a crítica cultural Aline Figueiredo.
Um dos mais marcantes entre estes talentos nos deixou há poucos meses e era um dos que mais me impressionava: Clóvis Irigaray. Falecido aos 72 anos no último mês de abril, com tatuagens espalhadas pelo corpo todo, inclusive o rosto, Clovito retratou povos indígenas em situações cotidianas das cidades em um dos movimentos mais originais da cultura brasileira. Sua série "Xinguana" é sensível, provocativa e comovente.
Enquanto já vi de perto as artes visuais pulsarem na capital cuiabana, tenho muita vontade de ficar em Goiânia por alguns dias para acompanhar os famosos festivais de rock da cidade, como o Bananada e o Goiânia Noise.
Curioso como um lugar onde a cultura sertaneja é tão forte (em Campo Grande é igual), o movimento roqueiro possa acontecer de maneira paralela e gerar uma banda de altíssimo nível como Boogarins, por exemplo.
Enquanto isso, apesar de Brasília ter ficado famosa por seus grupos de rock nos anos 1980, no Distrito Federal um dos endereços certeiros é o Clube do Choro de Brasília, com sua sede assinada por Oscar Niemeyer. Aliás, é impossível não pensar no arquiteto na Capital Federal, obviamente.
Mas se tem algo que o visitante do Centro-Oeste vai perceber e ouvir na maioria das cidades é que o pôr do sol é o mais lindo do Brasil e o céu é diferente das outras regiões, pois parece mais próximo, bordado de estrelas e impressiona nas noites de lua cheia.
Seja no Pantanal, na Chapada dos Veadeiros ou Guimarães, na Serra da Bodoquena ou do Amolar, no Centro-Oeste é assim: na dúvida, olhe para o céu e, por Toutatis, que ele não desabe sobre nossas cabeças!
Toutatis foi um deus celta cultuado na Gália antiga e na Britânia. Com base na etimologia de seu nome, tem sido amplamente interpretado ser um protetor tribal. O nome foi popularizado pelo slogan gaulês "Por Toutatis!", inventado pela história em quadrinhos Asterix de Goscinny e Uderzo.
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