Covid-19 na Holanda: pandemia é marcada por pragmatismo e "jeitinho"
Direitos individuais na Holanda são um símbolo nacional tão conhecido quanto os moinhos ou as tulipas. Desde o século 17, o auge da era de ouro holandesa, quando pilares liberais (como a bolsa de valores e o crédito) foram inventados em Amsterdã, o holandês está na vanguarda do que viria se tornar o chamado "mundo livre".
O pragmatismo é praticamente um patrimônio imaterial, uma característica unificadora que dá brio à identidade de cidadãos que residem da fronteira da Bélgica e da Alemanha às terras baixas do mar do norte da Europa. Como expatriado, morando no país há mais de quatro anos, vivi até a chegada da pandemia um pouco do sonho de uma nação que parecia blindada às mazelas do mundo em desenvolvimento.
Por isso mesmo, enorme foi minha surpresa ao perceber que a base que garante os direitos individuais ao holandês é um dos grandes entraves para o que poderia ser a resolução desta terceira fase da pandemia. E é irônico que, em nome da liberdade individual, a Holanda tenha reativado no último final de semana as mesmas medidas de lockdown adotadas no auge da pandemia.
Nadando contra a corrente
Enquanto países vizinhos implementam medidas polêmicas como o 2G — exigências de passaporte de vacina ou comprovante de recuperação, combinado com exames rápidos e uso de máscara — para manterem-se funcionando, a Holanda optou por postergar ao máximo a discussão a respeito das liberdades individuais, adiando o que seria uma possível solução para garantir o funcionamento do turismo no país.
Preciso deixar claro: o turismo na cidade não parou durante a pandemia. Não mesmo. Andando por qualquer rua de Amsterdã (lotadas no começo do inverno) era possível perceber que as primeiras medidas de contenção da nova variante, como o fechamento do comércio não essencial (às cinco da tarde) e o cancelamento dos eventos de grande porte (até segunda ordem), não afastaram quem já tinha planos de visitar a cidade.
Impedidos de funcionar para jantares e com capacidade reduzida durante o dia, cafés e restaurantes registravam lista de espera para longos almoços (a "modinha" nestes tempos) e se tornaram ainda mais concorridos com as restrições. Apesar dos sistemas de aquecimento externo, terraços são pouco atrativos durante o inverno, mesmo para quem mora na cidade. Alguns dos estabelecimentos mais concorridos, acredite, só tinham reservas disponíveis para o final do janeiro de 2022.
Até as matinês nos cinemas — além dos museus, o único programa cultural possível — continuavam em alta!
Consumo aquecido
Praticamente sem viagens até meados deste ano, o holandês em geral seguiu o que parece ter sido a grande tendência em boa parte do mundo e investiu em reformas na casa, inflacionando o mercado de serviços. Arquitetos, empreiteiros e trabalhadores da construção em geral, concorridíssimos, registraram aqui seu melhor ano da história recente.
O mesmo aconteceu com o comércio local. Se, mesmo durante os períodos de lockdown completo na Holanda, lojas de eletrodomésticos e vestuário registraram alta, após a reabertura do comércio, as ruas com lojas de luxo, como a PC Hoofstraat, em Amsterdã, passaram a registrar inimagináveis filas.
Se as previsões de economistas locais se confirmarem, com 42 bilhões de euros na poupança, este será o Natal mais pomposo dos holandeses.
A nação de viajantes ávidos, meio que impedidos de gastar em experiências mundo afora, vai seguramente torrar parte das economias acumuladas nos últimos dois anos em presentes, numa atitude consumista que vai contra a herança calvinista da Era de Ouro — ou mesmo da atual forte consciência ambiental do país.
O comercio online, claro, se ajustou perfeitamente ao momento, garantindo entregas expressas praticamente de todo tipo de produto.
Apatia no lockdown
Os tópicos da polêmica coletiva de imprensa convocada para 18 de dezembro, anunciando o novo lockdown (em teoria até 14 de janeiro), vazaram durante o dia e criaram filas no comércio. O mesmo aconteceu nos bares e restaurantes, em uma espécie de despedida informal.
Durante o primeiro lockdown, o comércio local gerou soluções criativas, como rotas gastronômicas, atividades ao ar livre etc. No entanto, nesses primeiros dias de neo-lockdown, comércio e residentes na Holanda parecem apáticos.
As ruas de Amsterdã estão mais vazias e muitos restaurantes não reabriram nem para take away. Conversando com o proprietário de um café que frequento no bairro de Jordaan, me surpreendi com sua opção de simplesmente chamar o período de "recesso". O fenômeno é similar ao que acontece no auge do verão, quando grandes chefs fecham seus restaurantes para curtir férias mundo afora, ignorando um dos principais períodos de alta de visitantes.
O êxodo de grupos de amigos e famílias rumo à vizinha Bélgica para aproveitar bares e restaurantes foi tão grande que o governo emitiu um comunicado recomendando que holandeses não cruzem a fronteira. Em outros tempos, cidades belgas como Antuérpia e Ghent miravam justamente na movimentação econômica trazida pelos holandeses que as visitavam em busca das cervejarias locais.
A Alemanha também está registrando grande aumento de visitantes holandeses. Se antes as restrições alemãs geravam discussões filosóficas intermináveis nos programas tipo mesa redonda da TV holandesa, hoje é bem possível que alguns defensores da liberdade individual holandesa estejam apresentando exames rápidos e passaporte de vacina para conseguir entrar, de máscara, em um cafezinho de Berlim — sem reclamar.
Os principais hotéis holandeses, cujos restaurantes não podem funcionar, criaram programas com refeições entregues nos quartos.
No Sofitel Legend The Grand Amsterdam, dei de cara com um grupo de americanos cruzando o lobby de roupão, rumo ao spa. Estão aproveitando as restrições para visitar pontos históricos sem aglomeração, parando, vez ou outra, para tomar um café ou Glu Wijn (vinho quente, comum nesta época do ano) em frente a um dos canais.
A corrida pela terceira dose
O primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, prometeu a terceira dose da vacina para 100% dos maiores de 18 anos até o final de janeiro — uma espécie de compensação pela extensão das restrições locais. Em breve, a maioria dos países da Comunidade Europeia só permitirá o trânsito livre com o passaporte da vacina com no mínimo três doses anticovid.
Sinto que o governo holandês arranhou um pouco a imagem pragmática do país durante a pandemia. As constantes mudanças no enfrentamento do vírus e a repetição do modelo abre-tudo-fecha-tudo me dão a impressão de que estamos enfrentando a peste do século tentando achar um "jeitinho". Eu, deixo claro, gostaria de certa normalidade no cotidiano, mesmo ao custo de testes diários para ir à academia ou para um almoço de final de ano.
A delicada discussão a respeito das liberdades individuais, que garantiriam o funcionamento do comércio ou a realização dos grandes eventos, deve se estender até meados de 2022. A levar em consideração a efetividade na diminuição dos casos e internações de um lockdown, não vejo outro modelo a ser adotado tão cedo por aqui.
Na terra dos navegadores negociantes, que teriam dado ao mundo os pilares do liberalismo, se a economia e os negócios se ajustarem, deve estar "tudo bem". O que, convenhamos, não deixa de ser uma lição de pragmatismo...
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