Tive que sair do apê que amava porque o prédio virou hotel: 'Uma pena'
Em fevereiro de 2014, tive o desprazer de receber uma notificação extrajudicial.
Tratava-se da convocação dos moradores do meu prédio para falar da desocupação do imóvel, que pertencia a um único dono (a quem todos os 31 apartamentos pagavam aluguel), havia sido vendido e passaria por um retrofit a fim de converter-se em hotel — o futuro Canopy by Hilton São Paulo Jardins, inaugurado sete anos depois.
Tudo soava hostil.
O "convite" recomendava que cada um levasse sua cadeira, pois o local, na cobertura, se encontrava vazio e não haveria lugar para sentar. Quem não quis carregar um assento precisou ouvir o aviso em pé mesmo.
Não foi meu caso: fiz questão de levar minha melhor cadeira, uma Panton original, cuja ergonomia impecável não aliviou o desconforto de receber a formalização da notícia: começaria o processo de devolução dos apartamentos.
Meu amado lar no Ed. Stella, para onde me mudei após sair da casa dos meus pais, estava com os dias contados.
Não que fosse novidade.
Boatos sobre isso corriam desde o ano anterior, e eu, do alto de minha capacidade de antecipação, já estava havia mais de um mês com as chaves do novo endereço nas mãos.
Ocorre que o apartamento de 80 m² se encontrava inabitável e precisava de uma obra pesada - já em andamento, porém sem chances de terminar dentro dos 90 dias concedidos para que eu esvaziasse o número 81 do Stella.
Acompanhada de um advogado, solicitei uma reunião com os novos donos da minha casa.
E consegui negociar dois meses extras, ao final dos quais minha reforma ainda não havia acabado. Mas não teve mais jeito. Eu era uma das últimas ocupantes daquele prédio-fantasma.
Entrar na garagem vazia era assustador, ficar sozinha em casa, então, nem se fala. No dia 9 de junho de 2014, fechei a porta do 81 atrás de mim e nunca mais voltei.
Exceto nos meus sonhos.
Oito anos depois desse episódio, bem acomodada no meu cantinho agora não tão novo (mas reformado sob medida para mim), eu seguia sonhando com o 81.
Sonhava situações corriqueiras, como passar lá para buscar algo que esqueci de trazer na mudança. Como se o lugar ainda me pertencesse e guardasse coisas importantes para mim. Como se fosse um local ao qual eu sempre pudesse voltar.
Mas a sensação era sempre de perigo e clandestinidade.
Abandono e ressurreição
Nos primeiros anos após sairmos todos de lá, o edifício ficou vazio, como que abandonado. Nessas condições, as construções entram numa espécie de entropia e se autodeterioram. Eu passava por ali e via os vidros dos janelões quebrados. Cheguei a contar os andares para checar como estavam os do meu quarto.
Quebrados, é claro. Era muito triste. Soube depois que houve até duas tentativas de ocupação no Ed. Stella, e que o projeto de retrofit (a cargo do escritório Marchi Arquitetura, contratado pela nova proprietária, a Tati Construtora e Incorporadora, e premiado neste ano pelo Top Master Imobiliário, importante reconhecimento do setor) começou apenas em 2018.
Mas, como mudaram meus caminhos pela cidade e raramente passo por ali, só recentemente deparei com o prédio todo iluminado, com um belo grafite na empena. Entendi que o hotel estava, finalmente, em funcionamento.
Demorei um pouco, mas me ocorreu a ideia: e se eu entrasse em contato como jornalista e solicitasse uma visita? Eu tinha acabado de quitar meu atual apartamento, mas o ciclo não parecia ter fechado. Os sonhos recorrentes continuavam.
Talvez a chance de voltar ao oitavo andar, ver como ele ficou, e poder escrever sobre a experiência me ajudasse nessa espécie de luto mal elaborado. Além do mais, muito me interessa o tema retrofit numa cidade como São Paulo, que não para de demolir freneticamente suas antigas construções — ação com alto custo ambiental e prejuízo histórico imensurável.
Do meu ponto de vista de moradora, na época, achei uma pena o Stella tornar-se um hotel. Mas pior seria se ele fosse posto abaixo. Até porque, acabei de descobrir, trata-se de um projeto original dos anos 1960 assinado pelo escritório Croce, Aflalo & Gasperini, autor de edifícios residenciais importantes e ainda atuante, com importantes projetos corporativos e urbanísticos.
Uma noite no hotel
Meu contato foi respondido com um convite para conhecer o Canopy Hilton e passar a noite em uma suíte do oitavo andar. Cheguei a pé, pois queria ter a sensação de percorrer o caminho que fiz tantas vezes pelo bairro até a rua sem saída ao fim da qual se situa o Stella.
Pouco mudou na ruazinha — continuam lá o restaurante da esquina, a pequena galeria de arte, lojinhas instaladas nas casas geminadas. Ao me aproximar do hotel, porém, notei que a antiga galeria coberta do térreo foi incorporada ao prédio e não mais oferece uma passagem de pedestres aberta para a Av. Brig, Luís Antônio.
Essa era uma bela gentileza urbana do projeto original, perdida no retrofit.
Já a laje da garagem, localizada imediatamente em frente a essa antiga galeria e antes subutilizada, deu origem ao restaurante. Ficou ótimo, mas, quando morei lá, sempre enxerguei esse espaço com potencial imenso para virar uma praça, um local público de descanso — algo que faz tanta falta em São Paulo, onde qualquer pausa na cidade está sempre associada ao consumo em algum café, restaurante, bar.
Seria possível abraçar conciliar essa preocupação com o espaço público e com os pedestres no projeto do hotel?
O arquiteto Wilson Marchi, autor do retrofit, acredita que essa permeabilidade entre espaços públicos, semipúblicos e privados é possível, sim, mas depende muito de cada situação.
Já projetamos um pocket garden aberto ao público em um empreendimento de uso misto.
Talvez o setor hoteleiro ainda precise virar uma chavinha.
Para ser justa, o novo Stella oferece, sim, uma gentileza urbana. Ou melhor, duas. Suas empenas laterais agora exibem grafites do artista Speto, conhecido personagem no universo da arte de rua paulistana.
Valiosa contribuição para a paisagem urbana.
Depois do check-in, subi ao oitavo andar. Ao sair do elevador, fiquei tentando me localizar. Onde será que estaria minha porta de entrada?
Logo reconheci o pilar que ficava no meio da sala. No fim do corredor, avistei a porta para a saída de emergência. Depois entendi que ali, antes, terminava o prédio — a nova escada está abrigada em uma "caixa" lateral anexa, construída só para ela a fim de atender às atuais normas de segurança.
À direita, minha suíte, a 807, ocupa o espaço do "quartinho", do banheiro de serviço e de parte da lavanderia do antigo apartamento — usei os janelões para me orientar, pois as aberturas na fachada permaneceram na mesma posição.
Dormi muito bem entre o quartinho e a lavanderia, obrigada. Achei que naquela noite teria sonhos incríveis, surrealistas, mas não.
O que ficou claro é que, ao que parece, o oitavo andar é, sim, um lugar ao qual eu sempre poderei voltar.
Como já avisavam os meus sonhos, agora reforçados pelo gentil gerente do empreendimento, o português Francisco Allegro: "Escusado dizer que aqui sempre será tua casa."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.