Pelé foi meu 'passaporte' em viagens pelos lugares mais remotos do planeta
Em 2009, durante um mochilão pela Jordânia, resolvi visitar de improviso a vizinha Síria.
Na época, o governo de Bashar al-Assad pedia para visitantes estrangeiros um visto complicado de ser tirado, que, via de regra, devia ser emitido no país do viajante — e eu não tinha o documento.
Mesmo assim, peguei um táxi na cidade de Amã e fui até a fronteira síria, para ver se conseguia entrar no país de alguma maneira.
Ao chegar à divisa, me arrependi imediatamente.
Em um guichê repleto de fotos da família Assad usando uniformes militares, o agente de imigração foi rude. "Por que você quer conhecer a Síria? Tem o visto?", me indagou em inglês, de cara fechada.
Certo de que teria minha entrada negada, tentei a sorte: "sou brasileiro e sempre quis conhecer Damasco, mas não tenho o visto", retruquei, entregando para ele meu passaporte.
A feição do homem mudou na hora. Com um sorriso, aquele funcionário da ditadura síria começou a conversar amigavelmente comigo e me concedeu o ingresso em seu país:
Adoro o futebol brasileiro. Amo o Pelé. Pague uma taxa de 28 dólares e pode entrar"
Para viajantes brasileiros no exterior, Pelé é uma chave que abre portas — e também um escudo que nos protege.
Em 2015, durante um período em que morei e trabalhei como jornalista no Líbano, peguei sozinho um ônibus rumo a uma área conhecida como Mlita, na tensa região sul do país, perto da fronteira de Israel e dominada pela entidade política armada Hezbollah.
Meu objetivo era visitar e fazer uma reportagem sobre o Marco Turístico da Resistência, um museu a céu aberto do Hezbollah que exibe centenas de equipamentos militares israelenses (incluindo tanques de guerra) destruídos nas batalhas entre a organização xiita e as forças armadas de Israel.
Antes da viagem, amigos de Beirute me alertaram: "Essa área no sul do Líbano é um lugar tenso e perigoso. Lá, todos vão perceber que você é estrangeiro. E podem pensar que você é um espião de Israel. Você pode até ser sequestrado", me disse um deles.
Fiquei com medo. Mas lembrei que, na minha mala, havia trazido uma réplica da camisa do Pelé da Copa de 70. Vestido oficialmente como brasileiro, com o manto do Rei, talvez minha viagem à Mlita ficasse um pouco mais segura.
Não tenho simpatia pelo Hezbollah, acusado de diversos atos terroristas no Oriente Médio. Mas há um detalhe curioso: as cores da camisa da Seleção Brasileira são as mesmas da bandeira do Hezbollah (amarelo e verde). Junto com o número 10 do Pelé, talvez isso representasse uma camada extra de proteção para mim.
Ao sair do ônibus em uma vila xiita ao lado Marco Turístico da Resistência, a primeira coisa com a qual me deparei foi um outdoor com o rosto de um combatente do Hezbollah que havia morrido durante um embate armado com Israel — e que era chamado de "mártir" em letras árabes enormes.
A tensão, porém, foi logo quebrada por um senhor de cabelos brancos que se aproximou de mim, tocou na minha camisa e disse, em inglês macarrônico:
Essa é a camisa do Pelé. Adoro o futebol brasileiro. Venha tomar um café na minha loja"
O senhor vendia café brasileiro em seu mercadinho, algo muito comum no Líbano. E contou que tinha visto os jogos da Seleção na Copa de 70 e que gostava do Santos (tentei convertê-lo à torcida do Corinthians, mas foi impossível).
Ao me despedir dele, perguntei se era seguro para um estrangeiro como eu caminhar pela área. "Não se preocupe. Os libaneses recebem muito bem seus visitantes. E todo mundo gosta do Brasil aqui", disse, apontando para a camisa amarelinha.
Facilitador de amizades
Ainda em vida, Pelé deixou um fardo enorme para nós, viajantes brasileiros: por causa do Rei e de grandes jogadores que o sucederam (como Ronaldo Fenômeno e Ronaldinho Gaúcho), muitos estrangeiros pensam que todo brasileiro é bom de bola.
Eu, porém, sou um perna de pau. Em viagens pela Ásia e África já fui convidado para jogar futebol com os locais só porque me apresentei como brasileiro.
Todos eles, logicamente, esperavam que iam bater bola com um talentoso discípulo do Edson Arantes. E logo se decepcionavam ao ver meu parco talento com a redonda.
Mas essas interações sempre geraram incríveis experiências culturais.
Seja em vilarejos remotos do Himalaia, em comunidades isoladas do Laos sem celular e televisão ou nas profundezas da Etiópia, todo mundo conhece Pelé. E é todo mundo mesmo: das avós às crianças.
E, nesses locais, é "Pelé" a primeira palavra que muitas pessoas falam ao ouvir que você é um viajante vindo do longínquo Brasil.
A partir daí, se abre uma conversa que começa no futebol e termina com você sendo convidado para um café ou refeição na casa do seu interlocutor, gerando verdadeiras amizades na estrada.
Para o brasileiro no exterior, Pelé abre portas e abre sorrisos. E isso é tudo o que queremos em uma viagem.
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