Topo

Itália ou Suíça? Degelo dos Alpes muda fronteira e surpreende turistas

Neve já cobre o teleférico da área de ski em Diavolezza, próximo a Pontresina - ARND WIEGMANN/REUTERS
Neve já cobre o teleférico da área de ski em Diavolezza, próximo a Pontresina Imagem: ARND WIEGMANN/REUTERS

da AFP

26/07/2022 11h42

No alto dos Alpes nevados, a uma altitude de 3.480 metros, as consequências das mudanças climáticas alteraram a fronteira entre a Suíça e a Itália, provocando uma disputa sobre a localização de um refúgio de montanha italiano que agora fica do lado suíço. A linha de fronteira entre os dois países é determinada pelo fluxo de água do degelo, que corre em direção de um país, ou outro.

Mas o recuo da geleira Theodul significa que a bacia deslizou em direção ao Rifugio Guide del Matterhorn, adjacente ao pico Testa Grigia, com 3.480 metros de altitude, e passando gradualmente abaixo do refúgio.

A situação surpreende atletas e turistas, como Frederico, de 59 anos, que, ao ver o cardápio em italiano com preços em euros, em vez de francos suíços, pergunta: "Estamos na Suíça, ou na Itália?"

A pergunta é válida, e a resposta foi alvo de negociações diplomáticas que começaram em 2018 e concluíram no ano passado. Os detalhes do acordo permanecem em segredo.

Uma cabana decorada com a cruz suíça próximo ao Rifugio Guide del Cervino, a 3.480 metros de altura, no pico Testa Grigia entre Zermatt, na Suíça, e Breuil-Cervinia, na Itália - FABRICE COFFRINI/AFP - FABRICE COFFRINI/AFP
Uma cabana decorada com a cruz suíça próximo ao Rifugio Guide del Cervino, a 3.480 metros de altura, no pico Testa Grigia entre Zermatt, na Suíça, e Breuil-Cervinia, na Itália
Imagem: FABRICE COFFRINI/AFP

Dormir do lado suíço

Quando o abrigo foi construído em um afloramento rochoso em 1984, suas 40 camas e longas mesas de madeira estavam inteiramente do lado italiano. Mas agora dois terços do albergue, incluindo a maioria das camas e o restaurante, estão tecnicamente no sul da Suíça.

A questão voltou à tona porque a área, dependente do turismo, está localizada no topo de uma das maiores estâncias de esqui, e uma nova estação de teleférico está sendo construída a poucos metros de distância.

Rifugio Guide del Cervino, entre Zermatt, na Suíça, e Breuil-Cervinia, na Itália. No topo dos alpes nevados, as fronteiras entre os dois países começam a mudar de lugar devido ao derretimento do gelo, colocando a localização da cadeia montanhosa italiana em xeque - FABRICE COFFRINI/AFP - FABRICE COFFRINI/AFP
Rifugio Guide del Cervino, entre Zermatt, na Suíça, e Breuil-Cervinia, na Itália. No topo dos alpes nevados, as fronteiras entre os dois países começam a mudar de lugar devido ao derretimento do gelo, colocando a localização da cadeia montanhosa italiana em xeque
Imagem: FABRICE COFFRINI/AFP

Um acordo foi alcançado em novembro de 2021 em Florença, mas o resultado será revelado apenas quando aprovado pelo governo suíço, o que não acontecerá antes de 2023.

"Concordamos em dividir a diferença", disse Alain Wicht, chefe de fronteiras da agência suíça de mapeamento Swisstopo, à AFP. Seu trabalho inclui guardar 7.000 marcadores ao longo dos 1.935 km da fronteira suíça com França, Itália, Alemanha, Áustria e Liechtenstein.

Wicht participou das negociações, nas quais ambos os lados fizeram concessões para encontrar uma solução em que "mesmo que nenhum dos lados ganhasse, pelo menos ninguém perderia".

O Glaciologista Andreas Linsbauer e a assistente Andrea Millhaeusler estabelecem um ponto de medição na Geleira Pers no resort alpino de Pontresina, na Suíça - ARND WIEGMANN/REUTERS - ARND WIEGMANN/REUTERS
O Glaciologista Andreas Linsbauer e a assistente Andrea Millhaeusler estabelecem um ponto de medição na Geleira Pers no resort alpino de Pontresina, na Suíça
Imagem: ARND WIEGMANN/REUTERS

Linha na neve

A fronteira ítalo-suíça atravessa geleiras ao longo da bacia hidrográfica. Mas a geleira Theodul perdeu quase um quarto de sua massa entre 1973 e 2010. Esse processo expôs rochas sob o gelo e alterou a divisão de drenagem, forçando os dois vizinhos a redesenharem cerca de 100 metros de sua fronteira.

Segundo Wicht, esses ajustes eram frequentes e tendiam a ser resolvidos sem envolver políticos. "Estamos discutindo sobre um território que não vale muito", disse. Neste caso, "é o único sítio que envolvia uma propriedade", que dava "valor econômico" ao terreno. Seus colegas italianos se recusaram a comentar, "devido à complexa situação internacional".

Andreas Linsbauer e Andrea Millhaeusler na fronteira da Geleira Pers em Pontresina, na Suíça - ARND WIEGMANN/REUTERS - ARND WIEGMANN/REUTERS
Andreas Linsbauer e Andrea Millhaeusler na fronteira da Geleira Pers em Pontresina, na Suíça
Imagem: ARND WIEGMANN/REUTERS

O ex-chefe da Swisstopo Jean-Philippe Amstein disse que essas disputas geralmente são resolvidas com a troca de parcelas de terra equivalentes em tamanho e valor.

Neste caso, "a Suíça não está interessada em obter um pedaço da geleira", explicou, "e os italianos não podem compensar a perda de superfície suíça".

"O vinho é italiano"

Embora o resultado do acordo seja secreto, o zelador do abrigo, Lucio Trucco, de 51 anos, foi informado de que o local permanecerá em solo italiano.

Um viajante explora caminhando as fronteiras da Geleira Pers no resort alpino de Pontresina - ARND WIEGMANN/REUTERS - ARND WIEGMANN/REUTERS
Um viajante explora caminhando as fronteiras da Geleira Pers no resort alpino de Pontresina
Imagem: ARND WIEGMANN/REUTERS

"O abrigo ainda é italiano porque sempre fomos italianos", afirmou. "O cardápio é italiano, o vinho é italiano, e os impostos são italianos", acrescentou.

Anos de negociações adiaram a reforma do refúgio, porque nenhuma das cidades de ambos os lados da fronteira podia emitir licença de construção.

Outra viajante no ponto de observação da geleira Pers em Diavolezza, próximo a Pontresina - ARND WIEGMANN/REUTERS - ARND WIEGMANN/REUTERS
Outra viajante no ponto de observação da geleira Pers em Diavolezza, próximo a Pontresina
Imagem: ARND WIEGMANN/REUTERS

As obras não serão concluídas a tempo da inauguração, prevista para o final de 2023, de um novo teleférico no lado italiano do Monte Klein Matterhorn. Suas pistas são acessíveis apenas por Zermatt, a conhecida estância de esqui suíça.

Algumas estações de esqui de altitude média estão se preparando para fechar as operações, devido ao aquecimento global, mas se pode esquiar no verão nas encostas de Zermatt-Cervinia, embora isso contribua para o recuo da geleira.

Ponto de observação próximo ao Monte Piz Palue e a Piz Bernina, próximo a Pontresina - ARND WIEGMANN/REUTERS - ARND WIEGMANN/REUTERS
Ponto de observação próximo ao Monte Piz Palue e a Piz Bernina, próximo a Pontresina
Imagem: ARND WIEGMANN/REUTERS

"Por isso temos que valorizar a área aqui, porque com certeza será a última a morrer", comentou Trucco. Por enquanto, nos mapas da Swisstopo, a sólida faixa rosa da fronteira suíça continua sendo uma linha tracejada ao passar pelo abrigo.