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Cannoli: a origem erótica do doce mais famoso da Itália

Hoje, o "autêntico" cannoli pode ser encontrado apenas em alguns cafés sicilianos - Getty Images
Hoje, o 'autêntico' cannoli pode ser encontrado apenas em alguns cafés sicilianos Imagem: Getty Images

Agostino Petroni - BBC Travel

28/02/2021 10h27

Reza a lenda que, na Sicília sob o domínio árabe, um harém de mulheres criou a guloseima para exaltar a masculinidade de seu emir.

Nápoles tem a pizza; Roma, o cacio e pepe (massa com queijo e pimenta); e a Sicília, os cannoli. Provavelmente a sobremesa mais famosa da Itália, os cannoli são orgulhosamente exibidos em quase todos os cafés e confeitarias sicilianas, homenageados no site oficial da ilha e imortalizados pelos sicilianos em O Poderoso Chefão com a famosa frase: "Deixe a arma, pegue os cannoli".

Mas se você já olhou para um cannolo (como é chamado o doce no singular) e pensou: "Sim, se parece com aquilo...", você não está sozinho. O amado doce siciliano de fato lembra um falo — e por uma boa razão.

Reza a lenda que na cidade siciliana de Caltanissetta durante o domínio árabe (por volta de 1000 d.C), um harém de mulheres criou a guloseima — uma concha de massa tubular frita feita de farinha, açúcar e manteiga recheada com queijo ricota doce e cremoso — para exaltar a masculinidade de seu emir.

Embora essa história não possa ser comprovada, já que não há registros escritos, a ideia de doces eróticos remonta há séculos.

Na Grécia Antiga, durante o festival de Thesmophoria em homenagem às deusas Perséfone e Deméter, as pessoas consumiam mel e bolos de gergelim em forma de seios para celebrar a fertilidade e a maternidade.

A prática, que acredita-se ter origem em rituais anteriores realizados no Antigo Egito para adorar a deusa Ísis, mais tarde se espalhou para o resto do Mediterrâneo e para a Sicília pré-romana.

Segundo Maria Oliveri, especialista em estudos de patrimônio cultural da cidade de Palermo, os órgãos sexuais não eram considerados tabu na Grécia e na Roma Antiga, mas reverenciados como símbolos de abundância.

Vários doces sicilianos, como o cannoli, têm origens eróticas - SALVO MASSARA/ALAMY - SALVO MASSARA/ALAMY
Vários doces sicilianos, como o cannoli, têm origens eróticas
Imagem: SALVO MASSARA/ALAMY

"As formas sexuais das sobremesas sicilianas derivam daquele mundo antigo. Naquela época, era importante ter muitos filhos, pois eles cultivariam a terra e sustentariam a família", explica Oliveri.

No século 11, os conquistadores normandos converteram a Sicília ao catolicismo, e as tradições antigas se misturaram às tradições católicas; as observações do solstício de inverno se misturaram ao Natal e os ritos de fertilidade, à Páscoa.

As antigas sobremesas resistiram e foram conservadas pelas freiras, que faziam os doces dentro dos conventos para festivais e feriados religiosos.

Por exemplo, a cassata (um bolo redondo de ricota geralmente decorado com marzipã, nozes e frutas cristalizadas), que acredita-se ter nascido durante o domínio árabe para celebrar a renovação da primavera, se tornou uma especialidade da Páscoa (cristã e judaica).

E, assim como os cannoli, várias outras sobremesas italianas antigas com formas eróticas foram passadas adiante ao longo do tempo.

O Minne Di Sant'Agata ou Minni di Virgini (uma meia esfera recheada de ricota coberta com glacê branco e uma cereja cristalizada) foi feito para parecer um seio em homenagem a Santa Agatha, uma mártir da era romana cujos seios foram cortados por ter recusado as investidas de um homem.

Já o Feddi ru Cancillieri (creme e geleia de damasco prensados entre dois biscoitos de amêndoas) foi criado em tom de brincadeira para se assemelhar às nádegas de um chanceler.

O Minne Di Sant'Agata ou Minni di Virgini foi feito para se parecer com um seio em homenagem a Santa Agatha - MARCIN KOSCIOLEK/ALAMY - MARCIN KOSCIOLEK/ALAMY
O Minne Di Sant'Agata ou Minni di Virgini foi feito para se parecer com um seio em homenagem a Santa Agatha
Imagem: MARCIN KOSCIOLEK/ALAMY

"As freiras não faziam sobremesas eróticas, como algumas pessoas pensam, porque eram sexualmente reprimidas e queriam se divertir, mas porque herdaram uma tradição antiga", diz Oliveri.

Desde o tempo da Grécia Antiga, a preparação e, portanto, o consumo desses símbolos comestíveis estavam associados ao ritual de sacrifício e acreditava-se que aproximava as pessoas dos deuses.

Como esse conceito foi transferido para o catolicismo, as freiras foram autorizadas a levar adiante a confeitaria, apesar das regras monásticas medievais que proibiam a gula.

No carnaval — celebração que antecede a Quaresma enraizada em um antigo festival em homenagem a Baco, o deus romano do vinho e do êxtase (Dionísio em grego) —, as regras eram flexibilizadas ainda mais.

De acordo com Dario Mangano, semiólogo da Universidade de Palermo que escreveu uma dissertação sobre a semiótica das sobremesas sicilianas, as regras às vezes precisam ser quebradas para serem reafirmadas — e o carnaval permitia exatamente isso.

O carnaval era uma época em que as regras religiosas eram quebradas - EMMEPI TRAVEL/ALAMY - EMMEPI TRAVEL/ALAMY
O carnaval era uma época em que as regras religiosas eram quebradas
Imagem: EMMEPI TRAVEL/ALAMY

Era a única época do ano em que o puritanismo católico dava espaço para o excesso e a autoexpressão desinibida — e era época de comer cannoli.

Os homens dariam o doce tubular às mulheres para insinuar seus desejos sexuais, cantando: "Ogni cannolu è scettru d 'ogni Re ... lu cannolu è la virga di Mosè" ("Todo cannolo é o cetro de todo rei... o cannolo é a vara de Moisés", em tradução literal).

Infelizmente, a maioria dos conventos que usava as receitas tradicionais de cannoli (como o Abbazia Nova, em Palermo) fechou, e apenas um punhado de freiras mais velhas ainda sabe como fazer.

E embora os cannoli sejam hoje onipresentes em toda a Itália, os melhores e mais "autênticos" podem ser encontrados apenas em alguns cafés sicilianos — como o Caffè Sicilia, em Noto, e o Euro Bar, em Dattilo — e em alguns lugares na comuna de Piana degli Albanesi.

Para ajudar a salvar a tradição, Oliveri abriu uma confeitaria em 2017 dentro do Monastério di Santa Caterina, em Palermo, chamada I segreti del chiostro, onde ela faz doces a partir de receitas que encontrou em pesquisas de arquivo e de famílias aristocráticas que conseguiram com conventos sicilianos.

O chef de confeitaria Corrado Assenza enche suas conchas de cannoli na hora, para que permaneçam crocantes - JANNHUIZENGA/GETTY IMAGES - JANNHUIZENGA/GETTY IMAGES
O chef de confeitaria Corrado Assenza enche suas conchas de cannoli na hora, para que permaneçam crocantes
Imagem: JANNHUIZENGA/GETTY IMAGES

Ao contrário da maioria das lojas que usa conchas de cannoli produzidas industrialmente, Oliveri faz as suas do zero, preparando a massa, cortando em círculos, enrolando em formas tubulares e depois fritando.

No dia em que falamos ao telefone, ela tinha acabado de fazer 900 delas.

Segundo ela, os cannoli artesanais são mais saborosos do que os produzidos em massa porque são fritos e vendidos na hora, mantendo a crocância e o sabor previstos.

Corrado Assenza, chef de confeitaria e proprietário do Caffè Sicilia, é o herdeiro aparente da confeitaria siciliana moderna.

Enquanto outros chefs confeiteiros apostam em variações dos cannoli, como enrolá-los em grãos de pistache ou recheá-los com ricota com sabor de chocolate, ele segue a receita tradicional mais simples e recheia as conchas na hora, para que permaneçam crocantes.

"Os cannoli se tornaram o ícone da Sicília", diz Assenza.

"E para mim é o manifesto da cultura alimentar contemporânea, na versão que propomos no Caffè Sicilia."

Com o tempo, a maioria dos cannoli sicilianos mudou de sabor e ingredientes - CHICCODODIFC/GETTY IMAGES - CHICCODODIFC/GETTY IMAGES
Com o tempo, a maioria dos cannoli sicilianos mudou de sabor e ingredientes
Imagem: CHICCODODIFC/GETTY IMAGES

Assenza ressalta que bons ingredientes são fundamentais para se preparar bons cannoli.

Por exemplo, há mais de 20 anos, ele usa ricota feita por Franzo Spada, um pastor local e proprietário de laticínios La Pecora Nera, que pratica a transumância (prática antiga de mover ovelhas para áreas de pastagem sazonal), acreditando que uma alimentação melhor leva a um leite melhor e, portanto, a uma ricota melhor.

"A ricota que chega ao café três vezes por semana é um patrimônio único", afirma.

"Nada precisa interferir [na casca e no recheio] porque é preciso deixar espaço para a farinha, a ricota e os demais ingredientes, para se tornar uma micro obra-prima."

Fora os cannoli sicilianos feitos por tradicionalistas como Assenza e Oliveri, a maioria mudou de sabor e ingredientes ao longo do tempo — devido ao avanço tecnológico e à influência de outras culturas —, e se espalhou pelo mundo.

Hoje em dia, por exemplo, você pode encontrar variações de cannoli com vários sabores na Little Italy de Nova York ou no North End de Boston, nos EUA, e uma versão com maple e bacon na Suécia.

Mas apesar das diferenças em relação ao original, a estrutura dos cannoli — que torna tão difícil comer sem fazer bagunça —permanece a mesma.

"Se os cannoli têm mais de mil anos, é porque eles conheceram o gosto de cada época", afirma Assenza.

"Espero que continue sendo um doce popular e que muitos o comprem."