Os chefs que buscam 'descolonizar' a cozinha brasileira ao valorizar seus ingredientes nativos
À frente de restaurantes em várias partes do país, cozinheiros trabalham para resgatar a culinária local de suas regiões, da escolha dos ingredientes aos pratos e sabores que são apresentados aos clientes.
Quando os primeiros portugueses chegaram ao Brasil, pouco quiseram saber da mandioca, dos nossos peixes frescos e das técnicas culinárias desenvolvidas pelos indígenas — vistas como atrasadas na época.
As embarcações da esquadra de Pedro Álvares Cabral chegaram ao território brasileiro ainda com alguns mantimentos que restaram, trazidos diretamente de Portugal, entre biscoitos, peixes salgados (como o bacalhau, claro), farinha e carnes conservadas em banha.
Aqui, comiam majoritariamente os alimentos trazidos nas gavetas de mantimentos e, à medida que se estabeleceram no país, criaram um fluxo de ingredientes que transformou toda a nossa alimentação (e agricultura) tal como conhecemos.
As Grandes Navegações foram decisivas para uma verdadeira revolução gastronômica: uma vez em contato, diferentes culturas abriram um intercâmbio generalizado dos gêneros alimentares de todos os continentes.
Mas, embora os europeus tenham levado do nosso continente alimentos que se tornaram a base de suas culinárias, como o tomate, a batata e o milho, também trouxeram para a América muitos de seus ingredientes. Ou, como mostra a história, os impuseram, em uma dieta que passou a vigorar nas colônias seguindo os hábitos do Velho Continente.
Em todo o tempo que o Brasil foi colônia, as cozinhas regionais foram ignoradas, principalmente as de matrizes indígena e africana. "Para os portugueses que chegaram aqui, só fazia sentido produzir os ingredientes que lhes eram conhecidos, e não olhar para o que o índio cozinhava, por exemplo", explica a chef Bel Coelho.
Foi durante viagens que empreendeu pelo interior do país visitando povos originários brasileiros, quilombolas, cozinheiras de casa e pequenos produtores que ela percebeu que havia uma necessidade de "descolonização" do gosto e da gastronomia brasileira, com o "intuito de resgatar produtos nativos, hábitos ancestrais e técnicas valiosas que contam muito da nossa história".
A chef, a exemplo de outros cozinheiros, passou a criar menus em que utiliza ingredientes e métodos que conheceu em distintas regiões como forma de dar maior visibilidade a eles.
No Cuia Café, sua empreitada mais recente em São Paulo, ela inclui em seus preparos bacuri, aridã, mel de jataí e tucupi para mostrar como eles podem ser incorporados nas nossas refeições sem que pareçam iguarias ou alimentos exóticos.
Falamos muito sobre os efeitos e consequências da colonização do Brasil na nossa história política, econômica e social. Mas será que passamos para pensar nas marcas que elas tiveram do ponto de vista do gosto e do comer?", questiona a cozinheira.
Segundo Bel Coelho, foram séculos de colonização nos quais os fluxos migratórios impuseram de certa maneira uma cultura alimentar que pouco incluía alimentos da nossa flora e fauna nativa, muito menos tecnologias já desenvolvidas por povos indígenas (como métodos de fermentação e até ferramentas engenhosas como o tipiti, usado ainda hoje para extrair o caldo da mandioca).
"Não quero com isso dizer que devemos negar os 500 anos de exploração, colonização e imigração portuguesas e suas influências marcantes na constituição do que podemos chamar de cultura alimentar brasileira", ela diz. Nem tampouco, acrescenta, outros fluxos imigratórios importantes que ajudaram a definir a nossa vasta mesa.
"Não há dúvida que esse caldo cultural do pós-colonialismo enriqueceu nossa cultura em muitos aspectos. Mas o que proponho é um novo olhar, generoso e humilde, sobre o que foi de fato encontrado nessas terras quando os europeus chegaram aqui", diz.
Afirmação amazônica
Isso é algo que muitos chefs também parecem mais dispostos do que nunca em tirar das sombras. Desde que abriu o Caxiri, em São Paulo, o propósito de Débora Shornik tem sido enaltecer a riqueza da Amazônia por meio de seus povos e ingredientes.
Sua intensa relação com a floresta e os povos ribeirinhos a fizeram mais recentemente se estabelecer em Manaus, onde a cozinheira comanda dois outros restaurantes. Para ela, já passamos da fase do preconceito sobre os ingredientes nativos, como o próprio tucupi, o puxuri, o pirarucu, uma vez que há muitos restaurantes os utilizando cada vez mais.
"Talvez o que ainda falta é um certo entendimento sobre eles, enxergá-los e consumi-los de forma simples, como parte do nosso cotidiano, que não sejam ingredientes só para comer em restaurantes", diz Débora Shornik, sobre a prevalência desses produtos ainda nas altas cozinhas, especialmente quando nos afastamos de suas regiões tradicionais.
Isso seria a afirmação de uma compreensão e a aceitação real desses produtos na nossa cozinha, de tê-los como uma realidade, e não como uma tendência, como modismos", defende.
Para a chef, ao mesmo tempo que precisam ganhar representatividade, é necessário mantê-los protegidos para que não se descaracterizem.
"Aproximar do grande público sem se afastar das comunidades", resume, dando o exemplo do açaí, que se popularizou, mas foi transformado em algo muito distante de como é tradicionalmente consumido no Norte — com peixe e pratos salgados, e não tendo seu sabor "disfarçado" com quantidades enormes de açúcar, o que não deixa de ser uma forma de colonização do sabor.
Sofremos um apagamento histórico profundo, de certa forma nos foi negado o que era nosso, nos foi ensinado que o que vinha de fora era melhor. Nos viciaram em açúcar, em trigo, em carne. Isso ficou marcado tanto na nossa memória quanto no nosso DNA", afirma.
Agora, a emancipação da gastronomia brasileira passa por mostrar que as tradições nativas constituem um valor alimentar enorme para o nosso povo, no prato e na sociedade.
Representatividade na cozinha
Débora Shornik é também uma das idealizadoras do Biatüwi, o primeiro restaurante de comida indígena do país comandado por índios, aberto em Manaus em novembro, em plena pandemia.
Ali, o casal João Paulo Barreto (da etnia Tukano) e Clarinda Ramos (de origem Sateré-mawé) serve receitas de suas aldeias, como a quinhapira, um ensopado de peixe feito com tucupi e servido com formigas nativas (maniwara) e farinha de mandioca.
"Queremos que os jovens indígenas, mesmo os que hoje vivem na cidade, tenham orgulho de suas tradições culinárias, e que não digam que pizza é sua comida preferida apenas por terem vergonha do que seus pais os ensinaram a comer", afirma João Paulo Barreto.
Ter representantes das diferentes culturas gastronômicas à frente de projetos como esse é, também, uma forma de reparação histórica.
Em Salvador, o chef baiano Fabrício Lemos aposta nos ingredientes que ajudaram a formar a identidade da culinária baiana no seu restaurante, o Origem, para elevá-la em seu cardápio.
Ele foca em pratos de origem africana que estavam esquecidos ou ignorados. Um dos exemplos é o efó, uma espécie de refogado de preparo semelhante ao do caruru, mas feito com língua-de-vaca (um tipo de plantas alimentícias não convencional), camarão seco, amendoim e castanhas.
O intuito não é só tirá-los da sombra, mas fazer com que a cultura por trás deles também não desapareça. Se não os trouxermos para a mesa, ela vai desaparecer, e com isso desaparece parte nossa história, que nunca foi bem destacada", defende.
Para isso, ele tenta quebrar alguns paradigmas ao propor receitas mais criativas e combinações mais ousadas, como o abarajé, um tipo de abará empanado e frito servido com vatapá, como em um acarajé.
O público-alvo do restaurante, ele diz, sempre foram os próprios baianos, não os turistas. "Quis trazer pratos mais 'gastronômicos' para despertar o interesse dos locais. As pessoas dizem que não saem para comer esses pratos porque os podem fazer em casa. Mas, no fim, acabam não fazendo, e eles ficam esquecidos", explica.
Para isso, o cozinheiro também criou um projeto em que convida chefs de outros Estados do país para cozinharem no Origem, e assim possam aprender mais sobre a culinária baiana e levá-la para outras regiões. "A gente deu sorte de nascer na Bahia, e ter esses pratos no nosso dia a dia, como parte de uma culinária tão rica", diz.
Por isso, Fabrício Lemos diz ficar extremamente estarrecido quando produtos-base dessa cozinha acabam perdendo espaço, como é o caso do dendê, que hoje precisa ser trazido de outros Estados.
"Como é que pode que um dos elementos primordiais da nossa cozinha não seja amplamente produzido aqui?", pergunta. Ironicamente, a Bahia já começa a produzir seu próprio azeite de oliva, uma herança dos portugueses. "É uma prova de como a nossa cozinha, que advém de uma matriz tão significativa quanto a africana, foi reprimida pelos séculos porque tinha sua origem nos escravos", afirma ele.
O cozinheiro esclarece que o afinco com que segue seu trabalho é para mudar essa visão torta sobre os valores que se perpetuaram nesse processo de colonização.
"Tudo começou pela Bahia, afinal o Brasil foi 'descoberto' aqui, não é? Somos uma mina de ouro inexplorada, que os portugueses não viram e que não é valorizada muitas vezes nem sequer pelo próprio baiano. Mas estou disposto a trabalhar duro para engrandecê-la."
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