O lago que volta à vida após quase virar deserto
O leito seco do Urmia, no Irã, chegou a virar fonte de uma poeira salgada que passou a alimentar violentas tempestades de areia. Seu renascimento começou tímido há menos de 10 anos -- e ainda enfrenta uma série de ameaças.
O lento distanciamento do cais foi o sinal mais óbvio de que algo estava errado, relembra Solmaz Daryani.
Até o fim da década de 1990, o hotel de sua família ficava a poucos passos da costa norte do Lago Urmia, no Irã. Aos poucos, porém, suas águas começaram a recuar.
No início, seu tio ampliou o cais em 100 metros para facilitar o acesso dos hóspedes aos barcos. No ano seguinte, ele precisou avançar o dobro da distância.
Por fim, com o lago recuando em velocidade recorde, teve que se dar por vencido.
"Num dado momento, ele simplesmente teve que parar de ampliar (o cais). O lago estava se movendo 500 metros por ano", diz Daryani, que é fotógrafa e passou grande parte dos últimos anos documentando o que aconteceu com o lago.
À medida que o lago encolhia, a terra se tornou menos acolhedora. A vegetação morreu, e os movimentados resorts à beira do lago se transformaram em cidades fantasmas.
Não demorou muito para que Daryani chegasse à mesma conclusão de muitos moradores da região:
Percebemos que (o lago) iria desaparecer. Estava reduzindo a nada"
Assistir ao ambiente da sua casa definhar é de cortar o coração para qualquer comunidade. Assistir ao colapso de uma economia regional que sustenta 5 milhões de pessoas é um desastre nacional.
De certa forma, esta é uma história terrivelmente familiar.
Após décadas de desenvolvimento implacável, em que as preocupações ambientais raramente são levadas em conta, o destino do Lago Urmia pode ser muito semelhante ao do Mar de Aral, na Ásia Central, do Lago Poopó, na Bolívia, ou de uma série de outros corpos de água outrora impressionantes, agora bastante reduzidos.
"É meio simples. A retirada de água para uso humano aumentou tremendamente ao mesmo tempo que houve uma seca prolongada", explica Ali Mirchi, professor assistente do departamento de biossistemas e engenharia agrícola da Universidade Estadual de Oklahoma, nos EUA, que estudou intensamente o lago.
Por outro lado, esta é uma história exclusivamente iraniana. A destruição do Urmia se deu em um cenário de guerra, sanções e vale-tudo nas políticas internas.
Tudo isso culminou em uma situação em que até mesmo a tentativa de reviver o lago se tornou intensamente politizada.
Mas a história do Urmia também é diferente porque, contrariando todas as expectativas, o lago está mais uma vez começando a dar sinais de vida.
Trata-se da maior área alagada do Irã e já foi um dos maiores lagos de água salgada do mundo. Até recentemente, era também o principal destino turístico doméstico do Irã. Por décadas, moradores de Teerã dirigiram cerca de 10 horas da capital até o extremo noroeste do país.
Agora, o antigo litoral está repleto de hotéis em ruínas e barcos encalhados, muitos dos quais se erguem de forma desconcertante no deserto, sem nenhuma gota d'água à vista.
A mesma falta d'água que fez o lago secar está agora devastando as enormes extensões de terras agrícolas que dependem dos rios que as abastecem.
Entre as salinas e pelas outrora áreas exuberantes da bacia, há pomares abandonados, campos abandonados e casas abandonadas, cujos proprietários em grande parte partiram em busca de uma vida nova em outros lugares.
Com inicialmente mais de 5.000 quilômetros quadrados, o Lago Urmia encolheu para cerca de um décimo dessa área entre 2014-2015, chegando a apenas 5% de seu volume histórico.
Grande parte do lago agora é consumido por algas vermelhas de aparência doente, que se espalharam conforme a água desapareceu e o teor de sal aumentou.
O mais chocante de tudo, talvez, sejam as consequências para a saúde. Com a vastidão da crosta de sal exposta, ventos violentos transformam o fundo do lago hipersalino em tempestades de poeira que podem afetar a saúde respiratória da população.
Mas como, em questão de anos, este lago passou de um paraíso turístico a um árido risco para a saúde?
Anatomia de um colapso
A seca do Lago Urmia levou muito tempo em formação. Após a revolução de 1979, que derrubou a monarquia, o Irã adotou uma política de autossuficiência alimentar, em parte para proteger as novas autoridades islâmicas da pressão internacional.
Muitos dos vinhedos à beira do lago foram destruídos, alguns dos quais foram arrancados por motivos religiosos. E chegaram gêneros agrícolas cujo cultivo consome mais água, como maçãs e beterraba.
Novos sistemas de irrigação foram implantados para produzir alimentos básicos e represas enormes foram instaladas em quase todos os afluentes do lago.
Ao todo, existem agora cerca de 40 barragens em funcionamento na bacia do Urmia — uma área do tamanho da Eslováquia — com muitas outras em estudo.
A população do país aumentou, em parte como resultado de políticas pró-natalidade. O Estado iniciou uma campanha para criar novos empregos. A agricultura parecia uma opção natural para muitos.
Desde a década de 1980, a área de terras agrícolas ao redor do Lago Urmia quadruplicou, enquanto as vilas regionais e cidades cresceram.
Poolad Karimi, ex-professor associado de água e agricultura do Instituto IHE Delft, na Holanda, cresceu passando os verões ao redor do lago.
Mas quando ele voltou recentemente após 15 anos fora, descobriu que a cidade natal de sua família estava quase irreconhecível.
Minha tia tinha um pomar e costumávamos caminhar 30 minutos por outros pomares para chegar lá. E, quando voltei, o pomar estava no meio da cidade, enquanto havia enormes áreas de fazendas que não existiam antes", recorda.
Diante da guerra de oito anos com o Iraque na década de 1980 e contínuas tensões com o Ocidente, o meio ambiente se tornou uma prioridade tão baixa que as autoridades cogitaram até fechar o departamento de meio ambiente, de acordo com conservacionistas iranianos.
Por um tempo, até por volta de 1995, o lago parecia estar resistindo, apesar da baixa precipitação desde os anos 1970.
No entanto, com a crescente demanda por água, a seca se intensificou. As coisas começaram a se deteriorar rapidamente a partir daí, como mostram imagens da Nasa, agência espacial americana.
Com a necessidade urgente de irrigar suas plantações, os agricultores recorreram ao bombeamento de mais água subterrânea para compensar a falta de chuva ? esgotando ainda mais o lago e expondo seu leito salgado.
Em um ciclo de realimentação vicioso, a expansão da agricultura para terras desérticas marginais se somou às tempestades de areia, que despejavam a poeira carregada de sal do lago de volta nas plantações, reduzindo a produtividade.
A indústria de turismo do Lago Urmia entrou em colapso, acelerado pela deterioração da qualidade do ar. Afinal, quem quer passar férias em um lugar sem lago e com ar poluído?
Em 2008, a família de Solmaz Daryani fechou sua pousada, que naquele momento não hospedava ninguém além dos amigos de seu avô. Os outros 40 hotéis da cidade também logo fecharam as portas.
Manifestantes saíram às ruas ao redor do lago em 2011, gritando que o "Urmia está morrendo" e que o parlamento havia "ordenado sua execução".
Os serviços de segurança prenderam dezenas deles em uma amostra sombria das dificuldades que viriam para os ambientalistas.
O retorno da água
No entanto, com o lago reduzido a quase nada, ele finalmente teve uma espécie de respiro em 2013.
Com a intenção de resolver o que alguns viam como um constrangimento nacional — ou ansioso para ganhar votos, dependendo de com quem você falar —, Hassan Rouhani prometeu restaurar o lago durante a campanha eleitoral para a presidência. Após sua vitória, a restauração foi em frente.
Grande parte do plano se concentrou na reforma da agricultura local, que consome cerca de 85% da água do Urmia, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Ao deixar para trás o plantio de produtos agrícolas mais "sedentos", como melancias, as autoridades esperam reduzir o uso de água sem prejudicar a segurança alimentar do Irã.
E ao reformular as práticas de irrigação — sobretudo regando à noite, quando a água tem mais chance de afundar no solo —, eles vislumbram safras mais saudáveis — e com "menos sede".
Resultados prévios confirmam isso. Por volta de 2000, Mehdi Mirzaie, um ex-especialista em água da Organização de Planejamento e Orçamento do governo, coliderou um projeto-piloto holandês que, segundo ele, proporcionou um aumento de 50% na produção para os moradores, usando 30% menos água, simplesmente alterando seus padrões de cultivo.
Trata-se de mudar a cultura das pessoas. Se conseguirmos mudar isso, não importa qual seja a atitude do governo", diz ele
Convencer os agricultores dos méritos dessas reformas é crucial para o futuro do lago e uma prioridade para aqueles que lideram sua recuperação.
"Se você der a impressão errada às pessoas, elas vão sentir que suas vidas estão competindo com a restauração do lago", diz Mohsen Soleymani Roozbahani, ex-autoridade ambiental que agora integra o Programa de Desenvolvimento da ONU, que está oferecendo apoio técnico ao esforço de restauração do governo.
"É uma questão de construção de confiança."
Ao adotar essa abordagem, Roozbahani e seus colegas estão confiantes de que serão capazes de cumprir a meta de redução de 40% no consumo de água.
O departamento de meio ambiente, um dos vários órgãos do governo iraniano envolvidos na recuperação do lago, não respondeu aos pedidos de comentários desta reportagem.
Mas, junto com o foco na agricultura sustentável, há outras intervenções que geraram polêmica.
Trabalhadores da construção civil acabaram de cavar um túnel de 35 km de comprimento que vai transferir água da bacia vizinha de Little Zab para o lago, entre outros projetos de engenharia, como a reforma das estações de esgoto.
Karimi, do Instituto IHE Delft, questiona se essa estratégia resolverá a raiz do problema da escassez de água.
Se você vai atrás de coisas voltadas para o investimento, não precisa trabalhar com as comunidades. Não precisa mudar o comportamento", diz ele.
"Mas isso não vai funcionar. A demanda só vai aumentar para atender à oferta."
Ele e outros cientistas temem a repetição de alguns dos erros insustentáveis — que contribuíram desde o início para os problemas do lago.
Aqueles que estão nas áreas de onde a água será canalizada também estão furiosos. Ativistas dizem que as autoridades iranianas estão simplesmente impondo os problemas do Urmia a terceiros, empurrando a pobreza hídrica adicional para o Iraque, que já está sofrendo com uma escassez severa.
Eles estão preocupados que a escassez de água seja levada para áreas de maioria curda do Irã que carecem de apoio político para reagir.
Por outro lado, as províncias iranianas do Azerbaijão, onde o lago está localizado, estão entre as partes politicamente mais influentes do país.
Esperança para a natureza?
Hoje em dia, a área do lago aumentou para 2.800 km², cerca de metade de seu tamanho histórico. Mas quanto disso se deve ao programa de restauração e quanto se deve às fortes chuvas?
Também não há garantia de que as tempestades de areia vão se dissipar ou enfraquecer tão cedo, não importa o quão bem-sucedido seja o renascimento do Urmia.
À medida que a desertificação causa estragos, o Irã sofre com redemoinhos de poeira que nascem muito além de suas próprias fronteiras.
Mais complicado ainda é o ambiente político em que o lago está sendo restaurado. É ano de eleições presidenciais, e a recuperação do lago ganhou contornos um tanto partidários.
Os radicais definitivamente veem essa questão do meio ambiente e da restauração do lago como uma história de sucesso da base de Rouhani", diz Negar Mortazavi, jornalista e analista político baseado em Washington.
"E eles obviamente veem isso como um ponto de disputa que não querem defender e não querem que a mídia defenda."
É nesse contexto que o lago atingiu um ponto crucial — está atualmente 3 metros abaixo da sua meta de nível da água.
"Portanto, há um longo caminho a percorrer", diz Ali Mirchi.
"Se eles seguirem tudo o que disseram no programa de recuperação do lago, e se as condições forem favoráveis, é teoricamente possível chegar ao nível ecológico designado em um período de três anos. Mas se atingirmos as condições 'normais', pode levar até 16 anos."
Mesmo com o avanço do refluxo do lago, o volume de trabalho pela frente não dá sinais de diminuir.
Além da dificuldade de mudar as práticas agrícolas arraigadas e da questão de saber se grandes projetos de infraestrutura serão uma ajuda ou um obstáculo, existe a pressão adicional da mudança climática.
Para o Irã, isso deve significar mais seca, mais inundações e calor mais intenso pela frente.
Ainda assim, há algumas evidências de que a situação do Lago Urmia pode ter ajudado a desencadear um tipo de despertar ambiental.
Tendo visto de perto os perigos de permitir que as paisagens naturais definhem, muitos iranianos estão mais atentos às questões ecológicas.
Com um pouco de paciência e apoio contínuo, os envolvidos no esforço de restauração do lago estão confiantes de que será um sucesso.
"Restaurar o lago é um processo. Você não pode simplesmente estalar os dedos", diz Mohsen Soleymani Roozbahani.
"A situação do Lago Urmia é resultado de pelo menos 20-25 anos de desenvolvimento insustentável na bacia."
Por sua vez, os habitantes da região do lago estão cautelosamente otimistas.
A água está agora se aproximando de uma doca de conserto de navios centenária que muitos moradores da margem nordeste do lago usavam como ponto de referência.
"Agora até meu tio diz: a água está se aproximando", diz Solmaz Daryani.
"As pessoas estão vendo as coisas acontecerem. Muitas pensam que talvez haja alguma esperança agora."
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