Zuzu Angel: o centenário da estilista que lutou para descobrir destino de filho assassinado e foi morta pela ditadura
A trágica história da estilista mineira Zuzu Angel - nome artístico de Zuleika Angel Jones (1921-1976) - já foi contada e recontada algumas vezes. Só em livros, foram três e mais duas biografias chegarão em breve às livrarias.
Quase todos os dias, ao cair da noite, o jornalista Zuenir Ventura recebia a visita da estilista Zuzu Angel (1921-1976) em sua casa. Entre um assunto e outro, a "Mãe Coragem" — como ele a apelidara, carinhosamente, numa alusão à peça escrita pelo dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898-1956) — relatava a via-crúcis que percorria para descobrir o paradeiro de seu filho, Stuart Edgar Angel Jones (1946-1971).
No dia 14 de maio de 1971, seu primogênito fora capturado em Vila Isabel, Zona Norte do Rio, por agentes do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA) e levado para a Base Aérea do Galeão, na Ilha do Governador.
Em uma de suas visitas à casa de Zuenir, Zuzu deixou, em abril de 1975, um bilhete, manuscrito, onde dizia:
Se algo vier a acontecer comigo, se eu aparecer morta por acidente, assalto ou qualquer outro meio, terá sido obra dos mesmos assassinos do meu amado filho"
"A lápis, acrescentou: 'Esteja certo que não estou vendo fantasmas'", recorda o jornalista.
Zuenir Ventura não foi o único a receber o "bilhete-testamento" de Zuzu Angel. Temendo por sua vida, a estilista escreveu dezenas deles e os confiou a artistas e intelectuais, como o dramaturgo Paulo Pontes (1940-1976) e o compositor Chico Buarque. Quando o que Zuzu mais temia aconteceu, na madrugada do dia 14 de abril de 1976, Zuenir, Paulo e Chico, três dos destinatários dos bilhetes, se reuniram na casa do compositor na Gávea, Zona Sul do Rio.
A estilista tinha morrido em um acidente de carro por volta das 3h30, ao voltar para casa, na Barra da Tijuca, de um jantar na casa de amigos. O Karmann-Ghia que ela dirigia capotou e caiu de uma altura de dez metros.
"Era impossível não fazer nada, era uma barra muito pesada", conta Chico no livro Para Todos (2000), da jornalista Regina Zappa. "Virou uma mãe da Praça de Maio, sozinha", compara o cantor às mulheres que tiveram seus filhos mortos ou desaparecidos durante o regime militar que governou a Argentina entre 1976 e 1983.
Os três, então, datilografaram dezenas de cópias do bilhete e as enviaram, pelos Correios, para jornalistas e senadores. Apenas Alberto Dines (1932-2018) fez referência ao bilhete em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo e cobrou providências das autoridades.
Para não levantar suspeitas, os três tiveram o cuidado de remeter as cartas de diferentes endereços — Zuenir, do Méier; Paulo, do subúrbio do Rio, e Chico, de Itaipava, região serrana. Mais que isso: a máquina de escrever usada para datilografar as cartas foi jogada ribanceira abaixo, na Rio-Petrópolis.
"Naqueles tempos, todo cuidado era pouco", justifica Zuenir na crônica O Filho e a Mãe-Coragem, publicada no jornal O Globo, de 27 de fevereiro de 2013.
Em 1981, quando lançou o álbum Almanaque, Chico Buarque decidiu incluir no repertório uma música composta quatro anos antes, Angélica (1977), em parceria com Miltinho, um dos membros-fundadores do MPB-4. No mesmo disco, gravou Cálice, parceria com Gilberto Gil.
Os versos "Quero cheirar fumaça de óleo diesel / Me embriagar até que alguém me esqueça" fazem referência à forma como Stuart Jones foi torturado e morto: arrastado por uma corda amarrada a um jipe militar pelo pátio interno da Base Aérea do Galeão, com a boca encostada ao cano de descarga até morrer, aos 25 anos, em junho de 1971.
Bicampeão carioca de remo pelo Flamengo, Stuart cursava Economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e militava no Movimento Revolucionário 8 de Outubro, o MR-8.
'Nem toda história bonita tem um final feliz'
A trágica história da estilista mineira Zuzu Angel — nome artístico de Zuleika Angel Jones (1921-1976) — já foi contada e recontada algumas vezes.
Só em livros, foram três: o póstumo Eu, Zuzu Angel, Procuro Meu Filho (1986), de Virginia Valli, irmã de Zuzu (no site Estante Virtual, alguns exemplares são vendidos por até R$ 200), a antologia ilustrada 50 Brasileiras Incríveis Para Conhecer Antes de Crescer (2017), da jornalista e escritora Débora Thomé; e o infantojuvenil Zuzu (2019), do jornalista e escritor David Massena.
"Quem dera fosse diferente, mas nem toda história bonita tem um final feliz. Assim aconteceu com Zuleika Angel Jones, uma moça linda e elegante com nome de artista de cinema", escreveu Débora no capítulo dedicado a Zuzu.
Em breve, mais duas biografias chegarão às livrarias: a primeira, sem título definido, está sendo escrita pela jornalista Hildegard Angel, uma das filhas de Zuzu; e a segunda, Quem É Essa Mulher, de autoria da jornalista Virginia Siqueira Starling, está em fase inicial, de pesquisa.
Diferentemente de Hildegard, Virginia não teve a oportunidade de conhecer sua biografada. No momento, está consultando jornais e revistas da época e realizando as primeiras entrevistas.
Para ela, são muitas as facetas a serem exploradas: a da mãe, que ousava dizer a verdade sobre as violências cometidas pela ditadura militar; a da mulher, que enfrentou o estigma de ser desquitada e ter que trabalhar para sustentar os três filhos; e a da empresária, que montou sua própria marca e exportou peças com bastante sucesso para países, como EUA, Canadá, Inglaterra, África do Sul e Arábia Saudita, entre outros.
A cada matéria de jornal ou artigo acadêmico que leio, descubro uma mulher valente, criativa e inovadora que, certa de suas convicções, vivia de acordo com aquilo em que acreditava", afirma Virginia.
Já Hildegard tinha 26 anos quando sua mãe morreu. Quando o telefone tocou no meio da madrugada, a jornalista carioca não teve dúvida sobre o motivo da ligação: algo tinha acontecido com Zuzu.
Ainda sonolenta, custou a acreditar que, pela terceira vez, uma desgraça tinha recaído sobre a cabeça de sua família. Depois de perder o irmão, Stuart, e a cunhada, Sônia de Moraes Angel (1946-1973), militante do movimento Ação Libertadora Nacional (ALN), presa, torturada e morta por agentes do Destacamento de Operações de Informação — Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), órgão de repressão militar, em São Paulo, sua mãe também tinha sido assassinada.
"Ainda hoje, quando tento imaginar a crueldade que fizeram com o Tuti e a cilada que armaram contra mamãe, fico triste e sofro muito", admite Hilde.
Até hoje, não consegui sepultar meu irmão. Não sei se o corpo dele foi jogado ao mar ou enterrado numa vala. E ainda temos um presidente que diz: 'Quem procura osso é cachorro!'"
Quanto aos restos mortais de Sônia, a viúva de Stuart, eles só foram identificados em 1991, quase vinte anos depois.
'Morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro'
Mineira de Curvelo, cidadezinha de pouco mais de 80 mil habitantes a 168 quilômetros de Belo Horizonte, Zuzu Angel se casou, em 1943, com o norte-americano Norman Angel Jones. Juntos, os dois tiveram três filhos: Stuart, o primogênito, que nasceu em 1947; Hildegard, de 1949; e Ana Cristina, a caçula, de 1952. O casal se separou em 1960.
Quarenta e cinco anos depois do trágico acidente na saída do túnel Dois Irmãos, que liga a Gávea a São Conrado, Ana Cristina Angel Dronne não se esquece das vezes em que a mãe, campeã de natação na adolescência, levava os filhos à praia. Mal chegava lá, esticava a toalha na areia e corria para dar um mergulho.
"Dominava as ondas sem dificuldade", orgulha-se a caçula, que hoje mora na França. "Ao voltar para areia, dizia: 'Na vida, a gente tem que enfrentar as ondas e atravessá-las sem temor'", repete. "São lições de vida que mais tarde, ao lado dela, acompanhando sua luta, se tornaram vivas e verdadeiras".
Se Zuzu Angel lutou para investigar o sumiço do filho e (depois de ler a carta escrita por Alex Polari, ex-companheiro de militância e de carceragem de Stuart), descobrir o que fizeram com o corpo do rapaz, Hilde e Ana Cristina lutaram para provar que sua mãe não morreu de um "suposto acidente de carro" porque ingeriu álcool, cochilou ao volante ou sofreu um infarto.
Em julho do ano passado, a Justiça brasileira reconheceu que Zuzu Angel foi assassinada por agentes da ditadura militar.
Segundo o relato de uma testemunha — o advogado Marcos Pires —, Zuzu Angel não foi vítima de "acidente de causas desconhecidas". Seu carro foi jogado para fora da pista por outro veículo depois de sair do túnel Dois Irmãos, hoje rebatizado de Zuzu Angel. Por essa razão, novas certidões de óbito foram emitidas em nome de Zuzu e Stuart. Nos documentos, a 'causa mortis' de mãe e filho foi reconhecida como "morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro".
Mamãe foi um exemplo de luta e determinação. Era uma mulher forte e combativa que superava todas as dificuldades, sempre com muito bom humor. Ela conseguia rir até do sofrimento", enaltece Hildegard.
Em 2013, durante depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada para apurar as violações de Direitos Humanos cometidas no Brasil entre 1946 e 1988, Polari confirmou cada palavra do que dissera na carta datada de 23 de maio de 1972.
Das passarelas da moda às telas do cinema e da TV
A canção de Chico Buarque foi apenas a primeira de muitas homenagens. Ao longo das décadas, a estilista recebeu outros tributos, como o enredo Quem é Você, Zuzu Angel? Um Anjo Feito Mulher? (1998), da escola de samba Em Cima da Hora, de São Paulo, e as coleções Quem Matou Zuzu Angel? (2001) e Zuzu Vive (2020), do estilista mineiro Ronaldo Fraga.
Em 2001, quando lancei a primeira coleção, teve repórter perguntando se a Zuzu compareceria ao desfile. Ou desconheciam sua história ou a confundiram com sua filha, a Hildegard", especula Ronaldo.
Como estilista da alta-costura, Zuzu Angel chegou a ter loja em Ipanema e em Nova York. Suas criações, repletas de brasilidade, alcançaram fama internacional e vestiram estrelas de Hollywood, como as atrizes Joan Crawford (1904-1977), Kim Novak e Liza Minnelli.
Em setembro de 1971, Zuzu Angel realizou um desfile-protesto na casa do cônsul do Brasil em Nova York, Lauro Soutello Alves. Na passarela, as modelos usavam figurinos bordados com tanques, fuzis e canhões. Já Zuzu vestia um vestido preto em sinal de luto, e ostentava um cinturão com crucifixos e um colar com a imagem de um anjo.
"Enquanto os estilistas da época estavam de olho nas influências que vinham da Europa, Zuzu fazia moda com produtos brasileiros, como linha, seda e algodão, e temas nacionais, como Lampião e Maria Bonita. Foi uma estilista tropicalista", define Ronaldo, acrescenta:
Zuzu está para a moda como Glauber Rocha está para o cinema ou os Tropicalistas estão para a música"
A história de Zuzu Angel também já ganhou as telas da TV e do cinema. Como Norman, o pai de Stuart, era cidadão americano, Zuzu resolveu denunciar o sumiço do filho e reivindicar o direito de sepultá-lo para o senador democrata Edward "Ted" Kennedy (1932-2009) e para o secretário de Estado, Henry Kissinger. No caso de Kissinger, Zuzu chegou a entregar um dossiê sobre o caso, quando ele se hospedou no Hotel Sheraton, no Rio, em 1976.
No programa Linha Direta Justiça, exibido em 27 de novembro de 2003, Zezé Polessa deu vida a Zuzu Angel e Mateus Solano, a Stuart Jones. O programa contou com os depoimentos, entre outros, dos jornalistas Hildegard Angel e Zuenir Ventura. Três anos depois, foi a vez de Zuzu Angel (2006), longa-metragem dirigido e roteirizado por Sérgio Rezende. Dessa vez, a personagem-título foi interpretada por Patrícia Pillar e seu filho, por Daniel de Oliveira.
"Zuzu foi uma espécie de Antígona moderna", compara a atriz, citando a protagonista de um dos clássicos de Sófocles, que ousou desafiar o rei Creonte para sepultar o irmão, Polinice.
"É terrível saber que a nossa democracia ainda é tão torta e tão frágil. Hoje em dia, ainda existem tantas Antígonas espalhadas pelo Brasil: vítimas de outros tipos de tortura, como a desigualdade social e a violência policial. E a Justiça, tantas e tantas vezes, não se faz presente com uma resposta às situações de violência do país", protesta a atriz.
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