Imigração: Total de brasileiros na Irlanda quintuplicou em seis anos; veja relatos
O número de brasileiros vivendo na Irlanda mais que quintuplicou nos últimos seis anos. Em 2016, eram 13,6 mil pessoas, segundo o censo local. Hoje, de acordo com estimativas elaboradas pela Embaixada do Brasil em Dublin, esse número alcança os 70 mil.
O país de pouco mais de 5 milhões de habitantes e 70 mil km² virou um ímã para os estrangeiros graças à facilidade que os recém-chegados têm de encontrar emprego legal e se regularizar, segundo especialistas em imigração consultados pela BBC News Brasil. O mercado de trabalho vive um momento de prosperidade, e há vagas em áreas diversas, para profissionais com ou sem qualificação.
Há ainda uma enorme oferta de cursos de inglês, que atraem centenas de brasileiros todos os meses. De acordo com alguns desses imigrantes, além do custo menor em comparação com outras nações que também oferecem aulas da língua, a Irlanda se destaca por oferecer uma modalidade de visto de estudos que permite trabalhar por meio período, ou 20 horas por semana.
Essa modalidade de visto, chamado de Stamp 2, pode ser tirada diretamente na Irlanda, logo após a chegada, desde que o estrangeiro comprove sua matrícula em um curso com duração mínima de 25 semanas e uma reserva de 3 mil euros (cerca de R$ 16 mil) ao passar pela imigração.
"Parte dos estudantes retornam ao Brasil assim que seu visto expira, mas uma outra parte permanece no país porque encontra boas oportunidades de trabalho dentro da lei", diz César Leite, chefe do setor consular da Embaixada em Dublin.
"A demanda por mão de obra é muito grande, porque os próprios irlandeses estão emigrando muito, e existe uma lacuna a ser suprida", explica o diplomata.
Além disso, a Irlanda tem um dos salários mínimos mais altos da Europa, na frente de países como Portugal e Espanha. Por hora, cada trabalhador recebe no mínimo 10,50 euros, ou cerca de R$ 55 — em comparação, o salário mínimo no Brasil, de R$ 1.212, equivaleria a R$ 5,51 por hora em uma jornada de 40 horas de trabalho por semana, segundo o Ministério da Economia.
O inglês também atrai muitos estrangeiros que já falam o idioma oficial do país e desejam morar na Europa, mas não querem se aventurar com as outras línguas do continente.
Mesmo os brasileiros de família europeia, que têm nacionalidade e passaporte europeu, escolhem a Irlanda como alternativa aos destinos mais tradicionais. Segundo a Embaixada, 25% dos portugueses e italianos que vivem hoje no país são também brasileiros.
A advogada Úrsula Perugini tem uma consultoria especializada em emissão de cidadania italiana com base na Toscana. Mas antes de abrir o negócio morou por quatro anos e meio na Irlanda, de onde vêm boa parte de seus clientes.
"Muitos dos brasileiros que antes tiravam a cidadania para permanecer na Itália ou para morar em Portugal, por exemplo, têm preferido ir para a Irlanda por conta das ofertas de trabalho", diz Perugini.
"Há ainda os que se mudam para Dublin ou outras cidades no país com o visto de estudante, gostam muito e decidem permanecer. Ao buscarem opções, acabam descobrindo que têm direito à cidadania europeia e iniciam o processo como meio de se manterem legais".
O baiano Felipe Távora desembarcou em solo irlandês em janeiro de 2020 ao lado do irmão para trabalhar e estudar inglês.
Formado em Engenharia Ambiental, o brasileiro de 27 anos se empregou em pelo menos quatro funções distintas ao longo do período de um ano em que ficou no país como estudante. Mas, pouco antes de seu visto expirar, Felipe se deparou com a possibilidade de virar cidadão europeu por conta de sua ascendência italiana.
O baiano natural de Vitória da Conquista então se mudou para a Itália por um ano, para realizar o processo de emissão da cidadania,
Ele está no Brasil atualmente visitando a família, mas já tem a passagem comprada para retornar a Dublin no final de maio. "Mesmo com a possibilidade de morar em outros países, ainda prefiro a Irlanda, porque sinto que as oportunidades no país favorecem meu crescimento profissional", diz.
Jovens e sem filhos
Edu Giansante, de 37 anos, mora em Dublin desde 2008. Quando chegou no país, a comunidade brasileira era muito menor e havia poucas informações sobre o processo migratório. Por isso, o paulista formado em Design Digital decidiu criar um site de notícias e informações sobre a Irlanda em português.
Por meio do E-Dublin, Giansante aconselha hoje muitos brasileiros que desejam seguir seus passos na Europa.
"A maioria das pessoas vem com a ideia de estudar, mas acaba gostando muito do país, encontrando bons trabalhos e fica por aqui", diz.
Além de dar dicas de migração, o E-Dublin também realiza anualmente uma pesquisa para traçar um perfil do brasileiro que vive na Irlanda. Em 2021, foram entrevistadas 2.881 pessoas em um período de dois meses por meio de uma plataforma online para coletar dados sobre status migratório, emprego e vida pessoal.
Segundo Giansante, a consulta mostrou que a comunidade é formada principalmente por pessoas entre 26 e 35 anos, solteiras ou casadas, mas sem filhos. Alguns têm ensino superior e buscam cargos em algumas das gigantes de tecnologia que elegeram Dublin para instalar sua sede europeia, tal como Google, Facebook, Linkedin e Microsoft.
O próprio paulistano encontrou emprego em uma dessas companhias e trabalha como gerente na empresa israelense Wix. "Assim como muitos outros, cheguei aqui em 2008 como estudante, mas logo consegui trabalho e um visto mais permanente. Hoje, sou cidadão europeu", conta.
A grande maioria dos brasileiros, porém, se emprega nas áreas de hotelaria e serviços, que prosperam com o mercado aquecido pelo fluxo de capital e aumento no consumo gerado pelas grandes empresas instaladas na capital.
Muitos recém-chegados também optam por funções mais informais, como entregas de comida e outros produtos. Com uma bicicleta ou moto é possível abrir uma conta em uma empresa de delivery e começar a trabalhar imediatamente.
Alguns estudantes também são atraídos para os aplicativos pela possibilidade de trabalhar em horários flexíveis, que podem ser conciliados com as aulas.
Foi o que fez Felipe assim que desembarcou em Dublin. "Tirei o visto depois de desembarcar na Irlanda, mas precisava arrumar um emprego rápido, então, comecei no 'delivery'", relata o baiano.
"Eu usava uma bicicleta para entregar comida e não vou mentir: não era fácil. Andar de bicicleta no frio da Irlanda é bem sacrificante."
Pouco tempo depois, porém, Felipe conseguiu uma vaga da qual gostava muito mais. "Em mais ou menos um mês, eu tirei meu visto e comecei a trabalhar como operador no estoque de uma rede de mercados", diz. "Depois disso trabalhei em construção e fiz bico em um bar, mas agora abri meu próprio negócio de consultoria financeira."
'Vim para estudar e fiquei'
Mas o grupo mais numeroso é o de estudantes. De acordo com a última pesquisa realizada pelo E-Dublin, em 2021, 40% dos entrevistados entraram na Irlanda com um visto Stamp 2, de estudante com permissão de trabalho. Em 2020, eram 53%.
"Ao contrário dos estudantes que vão para os EUA ou para a Austrália, que são muito jovens, os estudantes que vêm para a Irlanda costumam ser de uma faixa etária um pouco superior. Temos pessoas de 40 anos ou 45 anos", explica o diplomata César Leite.
Muitos são atraídos pelos cursos de inglês, mas também há aqueles que procuram por pós-graduação ou mestrado. "É comum vermos casos de brasileiros que chegam para fazer inglês, decidem começar uma faculdade e já engatam em uma especialização", conta Edu Giansante.
A tocantinense Ana Claúdia Tavares, de 31 anos, decidiu fazer um intercâmbio para estudar inglês há seis anos. Queria viajar e sair da zona de conforto. Ela então tirou uma licença do seu cargo na Prefeitura de Palmas e desembarcou em Dublin em outubro de 2017.
Pouco tempo depois que as aulas começaram, Ana arrumou trabalho como babá para uma família irlandesa. "Cheguei sozinha, sem nada de falar inglês e bastante assustada. Mas, quando comecei a trabalhar, me forcei a treinar e, em seis meses, já estava me virando bem", conta.
Os planos iniciais eram de estudar por um ano e retornar para o Brasil, mas o encanto pela Irlanda e um relacionamento fizeram com que ela decidisse ficar.
"Quando cheguei aqui, tudo mudou. Eu me apaixonei por um irlandês e fui ficando", relata. "Não vejo mais por que voltar permanentemente. Tenho minha família no Brasil, mas posso ir visitá-los".
Ana obteve uma permissão de permanência após firmar união estável com o namorado e, hoje, trabalha por conta própria, com fotografia e filmagem de eventos. "Não gosto do inverno rigoroso daqui, mas sempre posso passar uma temporada curtindo o sol do Brasil quando estiver cansada."
Trabalho rápido
Para além dos bons salários, a facilidade de arrumar emprego também deslumbra muitos brasileiros que desejam tentar a vida no exterior.
Segundo a pesquisa realizada em 2021 pelo E-Dublin, 39% dos entrevistados conseguiram um trabalho após um mês ou menos de sua chegada na Irlanda. Outros 37% estavam empregados em até três meses.
A paulista Kelly Ferreira, de 36 anos, desembarcou no país no início de dezembro de 2021 e, em menos de dois meses, já estava empregada como auxiliar de cozinha em uma empresa que presta serviços de alimentação para grandes companhias na cidade de Limerick, no interior do país.
Seu marido Diego Ferreira, de 37 anos, foi ainda mais rápido e começou a trabalhar 20 dias depois da chegada. Músico no Brasil, ele agora é auxiliar de cozinha em um restaurante.
"Fomos desligados da empresa em que trabalhávamos na pandemia e decidimos aproveitar a oportunidade para realizar o sonho antigo que tínhamos de morar fora", conta Kelly, que é formada em Administração e, no Brasil, atuava como técnica de Segurança do Trabalho.
O casal natural de Limeira, no interior de São Paulo, fez como muitos outros brasileiros e se mudou para a Irlanda com visto de estudante. Eles dividem sua rotina entre as aulas de inglês, o trabalho e as viagens de final de semana.
"Escolhemos a Irlanda também pela possibilidade de viajar pela Europa. Já vimos voo para Manchester por 7 euros [R$ 37] — ganhamos mais que isso em uma hora de trabalho!"
Os paulistas tiveram alguns percalços no caminho até a Irlanda, mas dizem estar vivendo um sonho desde que chegaram.
"Compramos as passagens quando as fronteiras da Irlanda já haviam sido reabertas após a primeira onda da covid-19, mas, pouco antes de embarcarmos, o governo decidiu bloquear a entrada de estrangeiros novamente", conta.
"Passamos praticamente dois meses com as malas prontas, só esperando a fronteira reabrir. Assim que liberou, embarcamos".
Tchau, Londres. Oi, Dublin
A Irlanda ainda vem sendo vista ainda como um destino alternativo ao Reino Unido, já que muitos brasileiros enxergam a atual situação do país após o Brexit, como foi chamada a saída do Reino Unido da União Europeia (UE), com insegurança e encontram mais dificuldade na busca por emprego em solo britânico.
O Brexit foi oficializado em 31 de janeiro de 2020 e cortou parte dos laços que o país mantinha com o bloco. Entre outras coisas, acabou com o privilégio que britânicos e europeus tinham de viajar de um lado para o outro do Canal da Mancha e escolher livremente onde viver e trabalhar. Desde que o "divórcio" foi oficializado, é necessário um visto para estadias longas e motivo de trabalho.
Com a imposição de controles de segurança na alfândega, muitos atrasos foram registrados na troca de mercadorias. Diversas empresas também optaram por transferir suas sedes do Reino Unido para outros países da UE, para evitar dificuldades na contratação de funcionários, burocracias e obstáculos alfandegários.
"Para os estudantes não é atrativo viver em um país que não tem vínculos com a União Europeia e de onde é mais difícil viajar", diz Edu Giansante.
"Organizamos feiras de intercâmbio no Brasil e começamos a perceber um aumento no interesse pela Irlanda entre 2007 e 2008. Antes havia muita procura por Canadá, Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia e Reino Unido. Mas esses destinos por vezes são mais caros para estudantes, ao mesmo tempo em que o Brexit desencorajou os que pensavam em imigrar para cidades inglesas".
O carioca Antônio Cunha, de 57 anos, se mudou para a Irlanda em 2019, após 20 anos vivendo em Portugal. "A oferta de trabalho ampla e o salário mínimo alto me chamaram muito a atenção e me fizeram querer morar aqui", diz.
Mas, após um ano morando na Irlanda, decidiu tentar a sorte no Reino Unido. Morou por oito meses em Birmingham, na Inglaterra, onde trabalhou prestando serviços de auditoria a restaurantes e lojas. Mas rapidamente decidiu voltar.
"O Brexit reduziu oportunidades de emprego para os imigrantes. E também há um processo mais complexo para se legalizar, mesmo para mim que sou cidadão português."
Atualmente, Antônio vive com a esposa e uma filha na cidade irlandesa de Waterford, onde trabalha como embalador em um matadouro. "A cidade está cheia de brasileiros que foram recrutados para trabalhar na indústria da carne", conta.
"Só no matadouro onde trabalho, mais de 70% dos funcionários são brasileiros."
A área que levou muitos brasileiros a se mudarem para a Irlanda nas décadas de 1980 e 1990, aliás, voltou a recrutar após a grave crise econômica que abateu o país em 2009. Segundo a embaixada brasileira, há diversas vagas para "desossadores" com experiência interessados em viver em um país que é um dos maiores processadores de carne da Europa.
De acordo com a embaixada em Dublin, a maior parte dos 70 mil brasileiros que vivem hoje na Irlanda estão em situação legal. A pesquisa realizada pelo E-Dublin indica que 3% dos entrevistados pelo site disseram estar indocumentados.
Mas para aqueles que decidiram se aventurar sem documentos, o governo irlandês trouxe boas notícias no início de 2022. O Ministério da Justiça abriu em 31 de janeiro as aplicações para que imigrantes ilegais que vivem no país há mais de quatro anos (ou três, em caso de famílias com filhos menores de idade) possam se regularizar.
As inscrições serão aceitas até 31 de julho de 2022, e os beneficiados ganharão uma permissão de imigração com acesso irrestrito ao mercado de trabalho.
"Esse processo é bom para os imigrantes, mas também beneficia o Estado irlandês, que, além de precisar de mão de obra, também consegue tirar essas pessoas da invisibilidade", explica César Leite.
Brasil fora do Brasil
A comunidade brasileira cresceu tanto que o que não faltam são restaurantes, mercados e lojas que vendem produtos típicos. Segundo Leite, esse nicho tem se tornando tão interessante para alguns comerciantes que os brasileiros têm sido procurados para trabalhar em lojas e restaurantes apenas por falarem português.
"Os brasileiros são muito bem-vistos por aqui, porque são considerados responsáveis e qualificáveis. E falar português tem sido visto como uma vantagem também", diz o diplomata.
E ter com quem conversar na língua nativa ou ter um prato típico à disposição ajuda a reduzir a distância de casa.
"Se estou com vontade de comer paçoca, acho paçoca. Se quero pão de queijo, é só pedir no delivery. Tem até lugar que vende erva para chimarrão", celebra Felipe Távora.
De acordo com a Embaixada brasileira, a cidade com maior número de brasileiros é a capital Dublin. Mas a comunidade brasileira também é grande em Cork, Limerick, Galway, Bray e outras cidades.
"A presença grande de imigrantes brasileiros por aqui nos ajudar a sentir em casa. É bom conversar na língua nativa, conversar com os recém-chegados sobre as novidades", diz Antônio Cunha.
O fluxo intenso de imigrantes, porém, agravou a crise imobiliária em todo o país, apontam os especialistas em migração consultados pela BBC News Brasil.
A dificuldade em encontrar uma residência para alugar na Irlanda é enorme. Quem chega à ilha por vezes demora meses para se estabelecer de forma confortável e, mesmo entre os irlandeses, conseguir acomodação é um problema.
E quem consegue alugar tem que arcar com um valor mensal alto. Entre brasileiros e outros estrangeiros, a locação em conjunto é a solução mais viável, mas mesmo assim não é fácil conseguir vagas, e intercambistas chegam a dividir quarto com seis pessoas ou mais.
O problema não é novo. Já na década passada, a Irlanda tinha uma bolha imobiliária erguida com base no endividamento, estimulada por empréstimos irresponsáveis e incentivos fiscais.
Quando a bolha estourou, em 2008, o preço dos imóveis despencou, os endividados declararam moratória, e a atividade da construção civil foi interrompida. O número de donos da casa própria caiu intensamente e muitos imóveis foram adquiridos por companhias privadas e estrangeiras.
O preço dos imóveis se recuperou após a recessão, mas o número de proprietários não, em parte porque os altos aluguéis tornam difícil poupar para pagar a entrada de uma compra.
Com a pandemia de covid-19, muitos estudantes e trabalhadores estrangeiros que estavam no país receberam extensão em seus vistos, aumentando a demanda. A reabertura das fronteiras intensificou ainda mais o problema, pois uma grande quantidade de pessoas que adiou a ida para a Irlanda durante o confinamento começou a se preparar para embarcar ao mesmo tempo.
Nos grupos de imigrantes no Facebook e WhatsApp, há muitos recém-chegados desesperados em busca de acomodação. A crise é mais visível em Dublin, mas não é restrita à capital.
"Tivemos muita sorte porque encontramos um irlandês alugando um apartamento individual. Mas muitos colegas brasileiros passam por dificuldades", relata Kelly sobre a situação em Limerick. "As melhores vagas são rapidamente preenchidas quando são anunciadas nas redes sociais, então por vezes a melhor forma de conseguir é conversando com amigos e por indicação".
As cidades não estão comportando o fluxo, segundo César Leite, da embaixada brasileira. "Infelizmente, é um problema de solução de longo prazo."
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