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O mercado de cruzeiros marítimos vai continuar à deriva?

Cruzeiros anunciam volta no pós-pandemia. Mas como será? - Arquivo pessoal
Cruzeiros anunciam volta no pós-pandemia. Mas como será? Imagem: Arquivo pessoal

Ben Fajzullin (ip)

09/07/2020 09h06

Meu tio australiano passou quase um mês trancado em sua cabine no que ele mesmo descreveu como seu "último cruzeiro de todos os tempos". Ninguém morreu ou pegou o coronavírus, como em muitos outros navios. Mas, em vez de navegar de Cingapura para Londres, o navio o levou de volta à Austrália sem uma única parada ao longo do caminho. Isso foi seguido por duas semanas de quarentena obrigatória em um hotel de Perth.

Uma semana depois, meu tio me mandou um e-mail dizendo que já havia reservado seu próximo cruzeiro! Eu não conseguia acreditar. Ele escreveu que a empresa havia lhe dado um reembolso integral de sua "viagem para lugar nenhum", além de um desconto de 50% para um cruzeiro de Perth a Cingapura no próximo ano - o oposto do que ele acabara de fazer, mas com paradas desta vez. Eu me perguntei se isso seria suficiente para reprimir aquelas terríveis lembranças.

Não exatamente o cruzeiro dos sonhos

Relatórios apontam que o coronavírus eclodiu em pelo menos 55 navios nos oceanos do mundo. Alguns especialistas em saúde pública chegaram a acusar tais embarcações de ajudar a transportar o vírus ao redor do globo. Muitos navegaram por semanas depois que a doença foi detectada pela primeira vez em um navio de cruzeiro. Isso até os portos passarem a recusar entradas, retendo dezenas de milhares de passageiros e tripulantes no mar - alguns por meses.

Um estudo realizado em março pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA associou navios de cruzeiro a 17% dos casos de coronavírus nos Estados Unidos nas primeiras semanas da disseminação global do agente infeccioso. Isso incluiu o Diamond Princess, local de um dos maiores surtos do mundo à época. Já o Ruby Princess foi apontado como o principal importador de casos para a Austrália, gerando uma investigação criminal.

"O problema permaneceu a bordo"

O setor garante, contudo, ter tomado medidas extraordinárias para limitar os surtos, e o coordenador marítimo do governo alemão, Norbert Brackmann, concorda. "O problema permaneceu a bordo", afirmou. "Os navios de cruzeiro são construídos conforme os mais modernos padrões de qualidade".

Em um passeio de barco pelo porto de Hamburgo, o veterano da indústria Walter Krombach me disse que os navios de cruzeiro eram mais suscetíveis ao coronavírus do que outros locais. "Onde se tem grandes aglomerações de pessoas, de 4 a 6 mil, mais a tripulação, todas em uma área restrita, misturadas, existe o risco", disse ele.

"Navios não têm laboratórios"

O animador de cruzeiros ucraniano Ivan Lytvynenko foi um dos milhares que ficaram presos no navio alemão MV Artania, na Austrália, quando o vírus eclodiu, levando a evacuações e mortes. Sua principal preocupação era a falta de equipamentos médicos a bordo. "Os navios não têm laboratórios para realizar testes. Isso é algo em que terão que pensar", alertou.

Brackmann disse estar certo de que "as operadoras de cruzeiros irão aproveitar essa experiência da pandemia e usá-la de forma a garantir que seus navios sejam ainda mais seguros no futuro". Ele salienta, no entanto, que as grandes embarcações terão que considerar a possibilidade de zarpar com apenas metade dos passageiros, isso se quiserem aderir às regras de distanciamento social. Ele também sugeriu menos paradas e mais rotas locais, encorajando os passageiros a fazer cruzeiros mais perto de casa em vez de voar até portos de partida.

A boa notícia é que as grandes operadoras de cruzeiros se saíram bem no que diz respeito ao fornecimento de desinfetante a bordo para limpeza das mãos. Enquanto no resto do mundo (com exceção de partes da Ásia) dispensadores de desinfetantes recém começaram a ser instalados, os cruzeiros já os oferecem há anos em seus restaurantes. Isso ocorre porque eles já tiveram que enfrentar todo tipo de surto: sarampo, varicela, salmonela, E. coli e o temido norovírus.

Minhas férias do inferno

Peguei o norovírus no meu primeiro e último cruzeiro em 2016. Passei dois dias inteiros com calafrios, febre, diarreia e vômito, trancado em minha cabine. Isso me deixou um pouco cético. Coincidentemente, as operadoras espanholas do cruzeiro Pullmantur simplesmente faliram. Houve relatos de que sua frota de três navios (um recém-restaurado em 2017) ia virar sucata.

A covid-19 teve um preço. Mas, como qualquer susto na área da saúde, os consumidores tendem a esquecer rapidamente. E aqueles que apenas assistiram o drama se desenrolar em suas TVs de tela plana, no conforto de suas próprias casas, provavelmente se sentirão ainda mais desconectados dos horrores.

Meus pais já estavam planejando o próximo cruzeiro. Meu pai tem problemas de saúde e não pode voar. Um cruzeiro parecia uma ótima saída para viajar. Mas e se ele pegasse algo a bordo, preso no mar, com pouco acesso a equipamentos médicos? Era algo com que eu me preocupava.

Cruzeiros menores anunciam partida

Ele ficou feliz em saber que algumas das primeiras operadoras de cruzeiros já estavam se preparando para voltar ao trabalho. Na mesma semana em que estive em Hamburgo, um pequeno barco de expedições foi o primeiro a se aventurar em alto mar para passageiros alemães. Menos de um terço dele estava ocupado. Na hora do check-in, a tripulação verificava a temperatura dos viajantes. Li que as paradas costeiras estavam fora de cogitação.

Quer isso signifique menos passageiros ou custos mais altos para o que algumas empresas batizaram de "padrão ouro em saúde pública", é de se supor que as operadoras estejam desesperadas para voltar a obter qualquer tipo de receita após bilhões de dólares em perdas e ações judiciais. E a vasta maioria das empresas continuou queimando outros bilhões em dinheiro, com seus navios presos nas docas. Os preços de suas ações continuaram afundando enquanto eu escrevia este artigo.

Aumentam as reservas

Segundo as plataformas de reservas, o interesse por cruzeiros voltou a subir. As operadoras têm oferecido grandes descontos, como no caso do meu tio. Por um lado, alguns analistas esperavam outro boom - ainda maior do que antes da crise. Krombach, por outro lado, acredita que o boom pode se dar por encerrado e que o setor nunca mais será o mesmo. "Todos no setor pensavam que o boom continuaria para sempre. O coronavírus trouxe uma parada - uma parada completa".

Em uma conversa de Skype com Ivan Lytvynenko, fiquei surpreso ao ouvir dele que também o seu navio estava lotado. "Todos os nossos passageiros querem voltar. Estamos com lotação esgotada pelos próximos dois anos e tenho certeza de que muitas, muitas pessoas vão querer fazer a viagem".

E o que diz o jovem de 31 anos, depois de ter sido preso com todos esses passageiros e a ameaça de um vírus altamente contagioso a bordo? "Mal posso esperar. Essa tem sido a minha vida nos últimos 11 anos. Sempre estive em navios de cruzeiro. Só não sei quando poderei fazê-lo novamente."