'Tirando nosso sustento': muro 'privatizou' praia famosa de Pernambuco
Ao lado de um dos destinos turísticos mais badalados do litoral brasileiro, a praia de Maracaípe costumava ser uma alternativa ao agito de Porto de Galinhas, em Pernambuco. Sem sofrer a mesma pressão do mercado imobiliário e do turismo de luxo do balneário vizinho, Maracaípe costumava se destacar pela tranquilidade e preservação da natureza.
Há dois verões, entretanto, a realidade mudou. O local está no centro de uma disputa pelo direito de acesso à praia. Um muro de 576 metros foi erguido na área do pontal, onde o Rio Maracaípe se encontra com o Oceano Atlântico, limitando o acesso de barraqueiros, turistas e moradores locais à faixa de areia e ao manguezal.
A estrutura, erguida por um empresário local, foi inicialmente autorizada pela Agência Estadual do Meio Ambiente de Pernambuco (CPRH), mas depois considerada irregular tanto pelo órgão quanto pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Secretaria de Patrimônio da União (SPU).
Há dois meses, o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) determinou a retirada do muro. Entretanto, mais um verão começa neste sábado e a estrutura permanece em pé, evidenciando a vulnerabilidade dos terrenos na costa brasileira à ocupação irregular. Nesta semana, o caso foi enviado à Justiça Federal, e a decisão estadual foi suspensa.
As irregularidades do muro de Maracaípe
O embate em torno do pontal começou em 2022, quando a CPRH concedeu uma autorização de construção para o empresário João Vita Fragoso, dono de quatro terrenos em Maracaípe, segundo registros do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
A autorização permitia a construção de um muro de 250 metros de extensão no imóvel "Propriedade de Pontal de Maracaípe", com dez hectares. Na época, a justificativa era a existência de uma erosão costeira no local.
Mas um relatório produzido pelo Ibama, depois de denúncias, apontou que o muro extrapolou em duas vezes o tamanho permitido. O documento, baseado em uma vistoria realizada em dezembro do ano passado, identificou pelo menos cinco impactos ambientais da construção.
Um deles é a poluição ambiental na Área de Proteção Ambiental (APA) Estuarina dos Rios Sirinhaém e Maracaípe, causada pelos restos de sacos de ráfia usados para fazer o muro. O Ibama constatou ainda que não havia erosão costeira na área. Pelo contrário, o muro contribuía para causar a erosão.
Os indícios apontam para um desvio de finalidade no pedido da autorização concedida pela CPRH, onde o proprietário tem o interesse de cercar sua propriedade com um muro em uma área que não permite edificação, pois é área de praia, descreveu o relatório.
O órgão não foi o único a identificar irregularidades no muro. Em um relatório de abril deste ano, a SPU apontou que o muro caracterizava uma ocupação irregular de 1.089,61 metros quadrados de áreas da União. O órgão emitiu uma multa de R$ 124 mil.
Diante dos relatórios, a CPRH cancelou a permissão para construção do muro em maio, mas os proprietários do terreno conseguiram uma liminar na Justiça impedindo o Estado de adotar medidas para remover o muro. Em outubro, a liminar foi derrubada, mas agora caberá à Justiça Federal decidir.
Limites e possibilidades de ocupação de praias
No Brasil, as praias são consideradas bens de uso comum do povo, de acordo com o que estabelece a Constituição de 1988 e o decreto-lei sobre bens imóveis da União, de 1946. As faixas de litoral que são consideradas terrenos de marinha contam 33 metros a partir do mar em direção ao continente. A referência para contar são as marés máximas do ano de 1831.
Ao todo, os terrenos de marinha representam 49% de todos os 764 mil imóveis da União. O Rio de Janeiro é o estado com mais, cerca de 75,5 mil, e Pernambuco, onde está Maracaípe, o segundo, com 68,3 mil.
"Hoje, no ordenamento jurídico brasileiro, é possível que um ente privado ocupe um terreno de Marinha, mas essa ocupação precisa ser regularizada com pagamento periódicos à União", explica João Victor Venâncio, assessor jurídico do Fórum Suape, organização que acompanha o caso do muro.
Segundo o Ibama, não há uma lei que regulamente a construção de muros em áreas de praias. Na prática, os municípios ou estados podem conceder autorizações. Por outro lado, a legislação veda qualquer intervenção em área de restinga.
O que acontece no Brasil, em zonas urbanas litorâneas, são praias modificadas há décadas, em que já não há mais como recuperar o cenário do passado. Nesses casos, muros para evitar o contato entre uma avenida e o mar já se tornaram legais.
No caso de Maracaípe, um empresário ergueu um muro extrapolando a área concedida pela União, apontou o relatório da SPU. "No caso concreto, a família [que construiu o muro] não fazia isso [pagar ao Estado] e estava ampliando o que dizia ser a sua propriedade", acrescenta Venâncio.
Integrantes de ONGs que trabalham na região questionam também os títulos do imóvel e dizem que desde a construção do muro, a família tem erguido outras propriedades dentro do mangue. No local, foi instalada uma placa de madeira com os dizeres "Pontal dos Fragoso".
Para o Ibama, "em uma área preservada, em que ainda há restinga e biodiversidade, não há por que construir um muro, pois se iniciaria um processo de urbanização, o que traria impactos inconvenientes, ainda mais em um cenário de mudanças climáticas".
O impacto na comunidade
O Pontal de Maracaípe costumava ser uma área aberta, pela qual era possível chegar por cinco acessos, conta Ana Paula Rocha, 40 anos, barraqueira que atua há 10 anos no pontal. O acesso era pela própria areia da praia, por trilhas dentro do manguezal e também com o uso de jangadas.
"Agora, a gente só tem um acesso, e tem dia que a gente sai de lá com a água no pescoço", diz. "Se a maré estiver alta, a gente só consegue vir pelo rio ou de jangada, e nem sempre a gente tem dinheiro para pagar o jangadeiro", acrescenta Helena Ivalda do Nascimento, 37 anos, pescadora e membro da Associação de Pescadoras Artesanais Mangue Mulher de Maracaípe.
De acordo com Rocha, o movimento de frequentadores na região diminuiu desde a construção do muro e sua renda caiu 50%.
Isso está tirando o nosso sustento. Somos 18 barracas e não conseguimos trabalhar. Como a gente vai dar de comer aos nossos filhos? Como vai pagar nossas contas?, questiona Rocha.
Sem as barracas, as 65 marisqueiras da região tampouco conseguem vender seus produtos, afirma Nascimento. "A gente deixou de pescar muito porque não sabemos se vamos vender", conta.
Outro problema enfrentado pelos moradores são as câmeras instaladas dentro do mangue, além da presença de seguranças. "No nosso entendimento, são medidas que dão uma utilização privada a áreas públicas. Em decorrência dessas câmeras, muitas marisqueiras têm se sentido constrangidas ao pescar", afirma Ornela Fortes, educadora social do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP).
Impacto da PEC das Praias
A situação de Maracaípe tem sido considerada por movimentos de pescadores, ribeirinhos e parlamentares que se opõem à PEC das Praias como um exemplo do potencial impacto que a proposta pode ter caso seja aprovada no Senado.
Aprovada pela Câmara dos Deputados em 2022, a proposta pretende permitir a transferência de terrenos da União a entes privados e governos locais. Por meio dele, Estados e municípios receberiam gratuitamente a propriedade de terrenos de marinha onde já existam prédios públicos instalados. Já pessoas físicas e jurídicas poderiam pagar pela titularidade do terreno.
A proposta iria ser votada no começo deste mês na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, mas a votação foi adiada após um pedido de vistas (mais tempo para análise).
O temor em Maracaípe é que uma eventual aprovação da PEC favoreça a ocupação já existente. "Se tendo uma proteção constitucional dizendo que esses são terrenos da União, que só podem ser usados e ocupados com autorização, a gente já tem esse tipo de conflito? Imagina cedendo esses territórios?", questiona Fortes.
Na medida em que a PEC é aprovada, e que se extinguem os terrenos de marinha e se permite a possibilidade de compra dessas áreas, já vai ter ali já uma situação de posse consolidada, acrescenta Venâncio.
Enquanto enfrentam localmente os desafios impostos pelo muro, os barraqueiros e marisqueiras de Maracaípe também se articulam para protestar contra a PEC. "A gente depende da praia e do mangue. A nossa luta é em busca de trabalho e liberdade. Que a praia seja uma área livre, pois é a única coisa que a gente tem", explica Rocha. Procurado, o empresário João Vita Fragoso não respondeu até a publicação desta reportagem.