Da normalidade ao medo: um diário da rotina com o coronavírus na Espanha
Enquanto as manifestações do Dia da Mulher lotavam as ruas, no dia 8 de março, a Espanha contabilizava "apenas" 580 casos confirmados de COVID-19 e 11 mortos. A grande maioria dos afetados estava concentrada em Madri e no País Basco. Em Barcelona, onde vivo, os contagiados não passavam de 70.
Ainda que besuntados de álcool gel e espirrando nos cotovelos, seguíamos a vida com relativa normalidade. É verdade que as aulas de algumas escolas na Catalunha já tinham sido suspensas na semana anterior. Mas, enquanto os pais requebravam para manter as crianças entretidas (inclusive frequentando parquinhos), a Sagrada Família e todas as atrações turísticas continuavam funcionando, assim como academias, cinemas, teatros, lojas e tudo mais.
Àquelas alturas, eu cogitava ir a festas, viajar na Páscoa e celebrar o casamento de amigos no começo do mês que vem. Hoje, dia 17 de março, a Espanha encontra-se em estado de emergência, há 11.178 pessoas doentes e 491 mortos (além de mais de 1000 curados).
As fronteiras terrestres estão fechadas e, possivelmente, o espaço aéreo do país deve seguir o mesmo rumo. É meu quarto dia de quarentena e a vida normal já parece estranhamente distante.
O início do temor
O ponto de inflexão foi 9 de março, quando os casos de coronavírus dobraram em menos de 24 horas, ameaçando a capacidade do sistema público de saúde. Presente na passeata do dia anterior, a Ministra de Igualdade (sim, a Espanha tem um ministério para cuidar dessa questão tão crucial) Irene Montero deu positivo no teste de coronavírus, evidenciando que as grandes concentrações de gente podem ser perigosíssimas no panorama atual.
Daí em diante, tudo aconteceu numa velocidade vertiginosa que, por pouco, não me rende uma tendinite nos dedões. Desde que a situação começou a se agravar, foquei meu trabalho em compartilhar notícias atualizadas e responder a centenas de seguidores aflitos, muitos deles com viagem marcada para a Europa, pelo Instagram.
A Itália está aqui ao lado. Ainda assim, a política do "só acontece com os outros" prevaleceu sobre o óbvio: o COVID-19 não enxerga fronteiras. Foi só ao passo que os números ficavam cada vez mais assustadores e as medidas de contenção, mais drásticas, que a ficha começou a cair.
Quando a ficha caiu
Pouco a pouco, comecei a notar as pessoas nitidamente mais tensas. Numa loja de badulaques ao lado de casa, topei com a vendedora chinesa atrás de uma "parede" de filme plástico na segunda-feira. Na terça, ela já tinha se mandado - assim como ela, muitos chineses iniciaram a quarentena antes de todo mundo. Na sexta-feira, a Sagrada Família, os museus e outras as atrações jogaram a toalha.
No sábado, quando o presidente Pedro Sánchez oficializou o estado de emergência, a Espanha parou. Pero no mucho. No primeiro dia de quarentena, ainda havia grupinhos fazendo piquenique na pracinha atrás da minha casa, gente correndo nos parques e até turistas circulando pelas Ramblas e na praia.
Desde então, a polícia e o exército têm intensificado a vigilância, multando quem está na rua sem justificativa, enquanto as pessoas também parecem tomar consciência da importância de ficar em casa pelo bem comum.
Em princípio, o estado de emergência deve durar pelo menos 15 dias, mas é bem provável que seja estendido. Enquanto o decreto estiver vigente, só podemos sair para comprar alimentos e remédios; ir ao médico, ao banco e ao trabalho (caso fazer home office seja impossível); cuidar de pessoas doentes/dependentes e passear com o cachorro.
Tudo cerrado
Todo o comércio está fechado, com exceção de farmácias, óticas, lojas de materiais relacionados à saúde, supermercados, lojas de comida/bebida, lavanderias e, claro, tabacarias, onde as filas são enormes. Pasme: cabeleireiros também faziam parte da lista de estabelecimentos essenciais quando as medidas foram anunciadas. Dois dias de polêmica mais tarde, as veneradas peluquerias sucumbiram à quarentena, para angústia das senhoras espanholas, que raramente lavam seus cabelos em casa ou deixam as melenas ao vento sem uma boa escova.
Minha primeira incursão em busca de alimentos desde que a coisa ficou séria foi sexta-feira passada. Encontrei as prateleiras vazias, compartilhei essas imagens e fiz brincadeiras sobre o apocalipse zumbi pelo Instagram. Depois, me arrependi de ter alimentado o pânico por um possível desabastecimento.
Isso porque, nesse dia, assim como quase toda a população da Espanha, fui ao Mercadona - e no fim da tarde! Famoso por ter lojas enormes e preços acessíveis, este supermercado acaba sendo a primeira opção de muita gente e, por isso, acabou protagonizando algumas cenas de "briga, tumulto, guerra" (ainda assim, os produtos estão sendo repostos todos os dias).
Em outros lugares, a situação costuma ser bem mais tranquila. Na própria sexta-feira, comprei peixe, carne, verduras e frutas no Mercado del Ninot (que fica em cima do Mercadona que encontrei vazio) sem nenhum problema. Hoje, voltei a sair para comprar algumas coisas, escolhi um supermercado pequeno e quase vazio ao lado de casa e comprei tudo o que precisava - menos papel higiênico. Devo aproveitar os próximos dias de quarentena para tentar entender o motivo dessa psicose mundial em torno do produto.
Vida de quarentena
Meu marido e eu somos profissionais autônomos e trabalhamos em casa há vários anos. Para nós, portanto, passar muito tempo em casa - e juntos - não é novidade. No primeiro fim de semana de quarentena, pintamos paredes, montamos móveis, jogamos tralhas fora. A mudança mais doída na nossa rotina, além da distância de amigos e familiares, é o impedimento de viajar (sou jornalista especializada em viagens), o que está longe de ser um drama.
Nessas condições, vamos combinar, a quarentena está muito longe de ser um sacrifício. Meus pais, irmão, cunhada e sobrinho também moram em Barcelona, e isso me deixa muito mais tranquila do que se eles estivessem no Brasil, por motivos que ficaram evidentes neste último domingo.
O tempo de reclusão certamente está sendo mais difícil para pais com filhos pequenos ou especiais, pessoas que vivem em situação precária ou na rua, casais em crise conjugal (especialmente para mulheres que sofrem violência de gênero) e muitas outras pessoas. Portanto, sou extremamente grata por poder passar essa situação difícil de uma forma tão confortável.
Atendimento seletivo
O protocolo para quem sente sintomas do coronavírus (febre alta, tosse e sensação de falta de ar são os principais) é ligar ao número de emergência local para ser testado e atendido em casa. Apenas os casos mais graves são encaminhados a hospitais. É uma estratégia sensata para tempos de "guerra".
Para quem vive na pele, no entanto, as coisas não são fáceis. Uma amiga teve muita dificuldade em contatar com o número da Catalunha e seu filho, que chegou a ter 39 de febre além de tosse fortíssima, não foi considerado um caso elegível para fazer o teste, já que não havia estado em zonas de risco nem em contato com algum caso comprovado. Examinado no CAP (Centro de Assistência Primária), ele foi mandado novamente à casa, onde continua passando maus bocados.
Lições de empatia
Mas essa crise sem precedentes, quem diria, também tem trazido coisas boas. A editoria Hearst, por exemplo, passou a oferecer acesso gratuito online a todas a suas revistas, entre elas Harper's Bazaar, Esquire, Elle e Cosmopolitan. Também estão pipocando os festivais virtuais, como o Quarentena Fest e o Yo Me Quedo em Casa Festival, com shows em streamming de artistas indie.
O pop star Alejandro Sanz, no embalo de Chris Martin (vocalista do Coldplay) e muitos outros, também aderiu à tendência, rebatizando sua turnê de #LaGiraSeQuedaEnCasa, com mais várias datas pela frente. Seu show no fim de semana passado foi seguido por mais de 1,6 milhão de expectadores no YouTube.
Uma vez fechadas as academias, muitas estão produzindo treinos online (depois de terminar este texto, farei minha primeira aula virtual de pilates, enviada por uma professora do estúdio que frequento). Até o meu app de meditação favorito, o Headspace, acaba de disponibilizar conteúdo especial para a quarentena, em espanhol, grátis. Muitas outras iniciativas parecidas estão pintando por aí.
Festa na janela
Desde sábado, as pessoas saem na janela com hora marcada para aplaudir os funcionários do sistema de saúde, verdadeiros heróis da guerra mundial que estamos enfrentando. Ontem, logo depois desse momento solene, um vizinho colocou música no último volume e as pessoas dançaram na varanda, com direito a efeitos especiais com a lanterninha do celular.
A "festa da janela" promete ficar bem mais animado no fim de semana, seguindo o que já vem acontecendo na Itália. No Brasil, país de ponta quando o assunto é diversão, essas baladas à distância prometem ser elevadas a um novo patamar. Fica em casa.
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