"Vamos todos ficar bem": um relato emocionante da quarentena em Portugal
Da janela do meu apartamento, rés ao chão de uma rua usualmente movimentada do Bonfim, bairro da cidade do Porto, no norte de Portugal, vislumbro aquela que, para mim, é a imagem mais triste desta temporada de isolamento: a entrada da casa de repouso, onde vivem dezenas de velhinhos, com as portas fechadas e um aviso na parede externa: visitas suspensas.
Por um tempo que talvez seja longo demais para quem está no fim da vida. E, como lembrou o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, por um tempo que ninguém sabe qual é. Não serão dias. Talvez sejam meses.
Marcelo, autointitulado "presidente dos afetos" - um senhor de ar bonachão, famoso por cumprimentar seus interlocutores com tal vigor que os faz perder o equilíbrio (como nesta situação aqui), - foi à TV na noite desta quarta-feira, ar circunspecto, para declarar o chamado "estado de emergência", que suspende parcialmente alguns direitos constitucionais.
Para um povo cujas lembranças de períodos de exceção ainda estão muito vivas - Portugal livrou-se da ditadura salazarista em 1974 - a medida assusta e arrepia. Não mais, porém, do que o crescimento exponencial da infecção por coronavírus. Até agora, dia 19, são 785 infectados e três mortos. Tanto assim que, do partido Bloco de Esquerda ao direitista Chega, o apoio ao estado de exceção foi praticamente unânime no parlamento português.
Estamos em quarentena
Com as novas medidas, estabelece-se oficialmente, em Portugal, uma rotina que já é a realidade dos países vizinhos, como Espanha e Itália. Para sair de casa, é preciso ter um bom motivo: comprar remédios ou alimentos, auxiliar parentes em situação vulnerável, trabalhar ou passear com o cachorro. Oficialmente porque, na prática, boa parte dos portugueses - e estrangeiros residentes no país, como eu - já está em quarentena desde o fim da semana passada.
Até então, embora as notícias do drama na Itália já nos alertassem que o mal se aproximava, estávamos, a maior parte de nós, em relativo estado de calmaria, a tocar nossas vidas dentro da normalidade.
Quando Emilia, minha filha de 15 anos, pediu-me para ir ao show da banda portuguesa Ganso, a palavra contágio nem me passou pela cabeça. Ao ver, no metrô, cada vez mais gente usando máscara, pensava, comigo, que aquilo tudo era um exagero. Foi só na sexta-feira, dia 13, que me dei conta da gravidade da situação.
Na véspera, o governo havia suspendido as aulas nas escolas, por tempo indeterminado, a apenas duas semanas do início das férias de Páscoa - uma pausa de duas semanas entre o fim do segundo e o começo do terceiro (e último) período letivo.
Para a semana seguinte, estavam marcados os testes finais. Todos os exames foram cancelados. Por isso, no grupo de WhatsApp da turma da escola da Alice, minha filha de dez anos, proliferaram emojis de fogos de artifício, palminhas e carinhas sorridentes. Mas a excitação descontrolada logo se transformaria no mais profundo tédio.
Sardinhas em falta
Já na sexta recebi uma mensagem de voz da Mariana, minha sobrinha - e vizinha. "Ouvi dizer que já está faltando comida no supermercado. Mas deve ser exagero". Pelo sim, pelo não, eu e o Lira, meu marido, resolvemos ir às compras no mercado da esquina. Mal pusemos os pés na calçada e já vislumbramos duas pessoas com sacolas pesadas nos ombros e rolos, muitos rolos, de papel higiênico nas mãos. Mais uns passos e avistamos um casal carregando, penosamente, garrafões de água mineral. "Está estranho", comentei. "Você está impressionada", ele me disse. "É sempre assim".
Não era. No supermercado, por cujos corredores costumávamos trafegar sem atropelos, clientes de máscaras empurravam carrinhos lotados de mantimentos. No setor de conservas, faltavam sardinhas. No açougue, o atendente reclamava do desespero dos clientes. "Pois veio cá toda a gente a querer levar um boi inteiro", disse-nos, para explicar porque, naquele momento, só havia um tipo específico de carne bovina - a 15 euros o quilo, cerca de 80 reais, nestes tempos de câmbio insano. Compramos atum entalado.
Voltamos para casa carregados, dentre inúmeros artigos de primeira necessidade, com latas de feijão, pacotes de leite e pizzas congeladas. E também algumas garrafas de vinho. Abrimos a primeira naquela sexta-feira, à noite, após um dia inteiro a acompanhar as notícias sobre a expansão do vírus, em tempo real, e os clamores das autoridades de saúde para que evitássemos o contato social e permanecêssemos em casa. Ali decretamos, oficialmente, o início da nossa quarentena.
Home office com crianças
Ouvi, com inveja, muita gente comentar que aproveitaria a clausura para ler, aprofundar-se nos estudos e ver filmes. Só vislumbra a possibilidade de tal mergulho existencial quem não tem crianças pequenas - e olha que minhas filhas já são crescidinhas. Meu marido e eu trabalhamos em regime de home office, como jornalistas, e aproveitamos as horas em que as meninas estão na escola para escrever. Se elas estão em casa, somente a muito custo conseguimos nos concentrar.
A todo instante, alguém nos interrompe porque sente fome, sede, carência, raiva ou tédio. Quando isso não acontece, com toda certeza estão mergulhadas no celular, o que nos leva a reclamar, como todos os pais, "vocês não sabem fazer outra coisa!".
Mas é pelo aparelho que as meninas mantêm algum contato com os amigos - e relatam que, como elas, a maioria não sabe mais o que inventar para passar o tempo, embora estejamos ainda na primeira semana de isolamento. Emilia pintou quadros psicodélicos com giz pastel. Alice produziu um curta em que Tom, nosso gato gordo e preguiçoso, é o protagonista.
Hoje cedo, por necessidade mas também em busca de alguma aventura, digitei no google "como cortar cabelo masculino". Convenci meu marido a ser minha cobaia. Argumentei que, com as barbearias fechadas, talvez, em breve, ele virasse uma espécie de Osho. Depois de quase uma hora a manusear uma tesoura de cozinha e um barbeador elétrico com bateria fraca, cheguei a um resultado que julguei satisfatório. Já ele, ao sair com a Bela, nossa cadela, pôs um boné.
Cidade do interior
"Levar o cão a passear", como dizem os portugueses, é uma das poucas oportunidades que temos para andar pelas ruas. O Porto, eleito melhor destino turístico da Europa em 2019, é um vazio só.
Sem os turistas estrangeiros e o contraste entre os executivos das grandes empresas e a meninada de piercing, roupas rasgadas e cabelo colorido que enfeita o bairro - a escola artística de ensino médio e a faculdade de belas artes ficam aqui perto - a cidade, de hábito tão cosmopolita, ganha ares de interior.
Não um interior alegre, com gente a conversar na calçada, mas algo que me lembra as pequenas cidades do nordeste do Brasil, ali pelo meio-dia, quando o sol é tão quente que ninguém se arrisca a sair de casa.
É um cenário belo, mas profundamente melancólico. Principalmente porque, nas ruas, já não se veem crianças. Nem mesmo nos parquinhos dos prédios, como o que moro. Sabemos que elas estão aqui porque aparecem nas janelas.
Na última quarta-feira, a garotinha do apartamento de frente deitou-se no parapeito de uma, para pegar sol. Impaciente, mudava de posição a cada poucos segundos. Mais cedo, uma bola de futebol caiu, de um andar superior, no pequeno jardim interno - um adulto ágil e apressado desceu para buscá-la.
Ontem, enquanto trabalhava, pude ouvir, da janela do meu escritório, um "parabéns para você" a duas vozes - uma delas, infantil. Como estamos em Portugal, cantou-se assim: "Hoje é dia de festa/Cantem as nossas almas/Para a menina Leonor/Uma salva de palmas".
Feliz aniversário, Leonor, e que a sua próxima festinha seja mais animada, cheia de amigos a cantar nossas almas e dedicar-lhe uma salva de palmas. Com carinho, da família do apartamento nove.
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