Discriminação e medo: a rotina dos comissários de bordo durante a pandemia
A pandemia de coronavírus tem fechado fronteiras e paralisado atividades de companhias aéreas em todo o mundo. No Brasil, segundo a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), as empresas Latam, Gol e Azul farão apenas 1.241 voos semanais entre o dia 28 de março e o final de abril de 2020 - número 91,6% mais baixo do que estava previsto para o período.
Mas como anda a rotina dos tripulantes que continuam trabalhando nas viagens aéreas em operação no país?
Medo do desemprego, preocupações com a saúde, afastamento da família e até episódios de discriminação protagonizados por pessoas que veem comissários de bordo como possíveis vetores do coronavírus têm feito parte do dia a dia de muitos destes profissionais.
Para fazer esta reportagem, Nossa entrou em contato com cinco tripulantes de companhias aéreas que operam no Brasil, que deram depoimentos sob anonimato. A seguir, saiba como está a vida destes profissionais nestes tempos de crise (os nomes de todos os entrevistados são fictícios).
Sensação de desconfiança
Comissário de bordo de uma das principais companhias aéreas do Brasil, Paulo conta que, neste mês de março, enfrentou uma situação inusitada e inédita no Rio de Janeiro: ao vê-lo uniformizado no saguão do aeroporto Santos Dumont, um passageiro se afastou como se estivesse com medo de que ele, por trabalhar viajando, o contagiasse com coronavírus.
"Eu estava prestes a embarcar no avião e me sentei, com um grupo de comissários, em uma fila de assentos no saguão do aeroporto", relata ele. "Ao nos ver, um passageiro que também estava ali simplesmente pegou suas coisas e foi embora". Paulo afirma que nunca tinha passado por este tipo de situação.
Também tripulante brasileiro, Fernando relata que, ao sair do aeroporto paulistano de Congonhas, depois de um dia de trabalho, teve dificuldade para conseguir serviço de Uber para voltar para casa. "Ao chegar e me ver uniformizado, o motorista me disse que não poderia me levar e foi embora. As pessoas estão vendo a gente com outros olhos, porque sabem que trabalhamos em contato com outras pessoas e no ambiente confinado do avião".
E este clima de desconfiança acompanha muitos destes profissionais até suas casas. Circula uma foto, em grupos de WhatsApp que reúnem comissários de bordo, de um aviso colocado em um prédio paulistano que fica perto de Congonhas e onde vivem muitos profissionais do setor aéreo. Fixado na área social do edifício, o papel avisa que a limpeza dos elevadores está sendo feita "com maior frequência", pois "temos moradores que são pilotos e comissários".
Longe da família
Ter que trabalhar dentro de aviões e em contato direto com passageiros faz com que muitos comissários, nesta época de pandemia, realizem sacrifícios pessoais.
Fernando, por exemplo, mora sozinho em São Paulo e conta que tem pais e avós no interior de Minas Gerais. Como não pode fazer quarentena por causa de seu trabalho, ele está evitando visitar sua família, mesmo que, às vezes, sinta-se solitário na capital paulista.
"Meu trabalho é ajudar a transportar pessoas para suas casas, para que elas encontrem suas famílias. Mas, ao mesmo tempo, eu não posso ficar com meus próprios familiares, que estão extremamente preocupados comigo, por causa da minha profissão", conta ele. "Esta distância é o que mais tem impactado minha vida atualmente".
Carla, por sua vez, que também trabalha para uma grande empresa aérea brasileira, aluga um flat perto de Congonhas com outras comissárias, mas tem seus pais morando no interior de São Paulo. Ela também abdicou, pelo momento, de realizar encontros familiares, com receio de ser um vetor de possíveis contágios de covid-19. "Irei pedir uma licença não remunerada do meu trabalho e, daqui a um tempo, quando eu souber que não estou contaminada, vou para a casa da minha mãe para ficar com ela".
Vida solitária
Além de lidar com a solidão em casa, comissários de bordo têm se sentido sozinhos em suas viagens de trabalho.
O comissário Guilherme, por exemplo, conta que fica isolado quando tem que dormir em hotéis fora de São Paulo, depois de trabalhar em um voo de média ou longa distância.
"Para mim, a maior dificuldade é ficar preso em um quarto de hotel quando tenho que fazer pernoite em alguma cidade fora de São Paulo. Nestas cidades, não estou mais saindo na rua em respeito à quarentena e à coletividade", diz ele. "Mas isso está me incomodando, porque minha profissão já é bastante solitária e, em tempos normais, durante as viagens, nosso convívio acaba sendo com outros comissários, saindo para almoçar ou pegar uma praia. Mas, agora, nem isso podemos fazer".
Guilherme também relembra que, no começo da pandemia, em um voo entre São Paulo e Buenos Aires, os tripulantes brasileiros foram obrigados a ficar confinados em seus quartos de hotel na capital portenha, por ordem das autoridades argentinas.
Ele conta que a comida era levada até as habitações e que os comissários só foram autorizados a sair do quarto na hora de fazer o check-out, para ir ao aeroporto e pegar o avião de volta para o Brasil.
Comportamento dos passageiros
Os comissários com os quais o Nossa falou disseram que os aviões nos quais têm trabalhado encontram-se, com razão, com pouquíssimos passageiros.
Porém, segundo eles, diversas pessoas que se veem obrigadas a viajar neste período de pandemia têm adotado um comportamento responsável nas aeronaves.
"Grande parte dos passageiros está usando máscara e o álcool em gel disponibilizado dentro do avião", conta Fernando, que também afirma ter sido elogiado pelos passageiros durante um voo no qual trabalhou recentemente "Muitos passageiros me agradeceram por eu estar ajudando a transportá-los para casa, mesmo com todos os riscos que existem nesta época de coronavírus. Isso me deixou com o olho cheio de lágrimas".
Entre os comissários, há também relatos que contam que, a bordo, as pessoas estão sentando-se umas longe das outras, aproveitando os espaços de sobra que existem no avião.
Mas, às vezes, ocorrem situações tensas nas aeronaves. O comissário Paulo, por exemplo, relata que, durante um voo, um passageiro entrou no banheiro e começou a tossir muito lá dentro. "Fiquei preocupado, mas ele parou de tossir e, depois que saiu do banheiro, não apresentou nenhum outro sintoma de doença. Era um voo curto, então nada precisou ser feito".
Também comissária de uma grande empresa aérea brasileira, Luciana revela que, durante um voo, "uma mãe que viajava com a filha com leucemia pediu para trocar de lugar, pois havia um homem tossindo perto delas".
O que mudou na rotina
Paulo diz que sua rotina de trabalho mudou bastante depois da eclosão da crise sanitária causada pelo coronavírus. Ele afirma que tem usado máscara e luvas a bordo da aeronave e que busca manter o máximo de distância possível dos passageiros dentro do avião.
Fernando, por sua vez, revela que os comissários foram orientados a evitar ao máximo o contato com a bagagem dos passageiros, para diminuir chances de contágio do covid-19. "Hoje, a gente não pode mais ajudar o passageiro a colocar suas malas de mão no bagageiro", afirma.
A comissária Luciana revela que "existe um protocolo que precisamos seguir caso haja, a bordo, um passageiro suspeito de ter coronavírus. Temos que observar a existência de sintomas como tosse, questionar se ele esteve em países com grande incidência da doença e, caso hajam grandes indícios de que a pessoa está doente, devemos tentar isolá-la dentro da cabine, além de notificar as autoridades de saúde do local em que iremos pousar, para que no desembarque sejam tomadas as ações necessárias".
"Insegurança geral"
Comissários de bordo estão entre os profissionais que mais se encontram preocupados, neste momento, com a sua saúde e com a crise econômica gerada pelo coronavírus.
São pessoas, afinal, que lidam diretamente com o público no ambiente fechado dos aviões e que trabalham para um setor que está sendo profundamente prejudicado pela pandemia.
"A insegurança é geral", diz Paulo. "A gente corre o risco de ser contagiado durante o trabalho e, depois, contaminar nossos familiares, amigos e pessoas que estão ao nosso redor. E, em relação aos nossos empregos, ninguém sabe o que esperar".
Porém, os comissários entrevistados disseram que as companhias aéreas estão sendo transparentes ao propor soluções para seus empregados.
"Com a crise, minha empresa deu aos comissários duas opções: uma delas é continuar trabalhando com o salário reduzido por três meses, mas fazendo pouquíssimas horas de voo [por causa da redução drástica de viagens aéreas que está ocorrendo no Brasil]", conta Carla. "A outra é pegar uma licença não remunerada, o que, para mim, é a melhor coisa a ser feita agora". Carla diz que quer ficar em casa cuidando da sua saúde, mas torce para que sua empresa se recupere da crise e não demita funcionários.
Paulo, que mora com a esposa e um filho pequeno, afirma ainda não saber o que faz: se adere à licença não remunerada ou continua trabalhando com um salário menor.Mas ele tem certeza de uma coisa: "toda a situação é extremamente complicada. Nem o 11 de setembro foi tão ruim para o setor aéreo", desabafa.
Cuidados sanitários das empresas aéreas
Para minimizar o risco de disseminação do covid-19 dentro das aeronaves, as companhias aéreas aumentaram drasticamente o cuidado com a higienização dos aviões antes e depois das viagens.
A Gol, por exemplo, informa que "a higienização completa dos nossos aviões envolve a limpeza dos assentos, cintos de segurança, apoios de braço, mesinhas, janelas, saídas de ventilação, compartimentos de bagagem, carrinhos de serviço, banheiro e portas. A cada parada, aplicamos desinfetantes de uso profissional e reforçamos as higienizações de pernoite. E também foram instalados, nas estações dianteira e traseira das aeronaves, suportes de álcool em gel, facilitando o acesso ao produto".
Além disso, a empresa diz que "quanto à tripulação, a Gol faz exames médicos periodicamente em seus colaboradores e mantém serviços de saúde internos, para atendimento de seus funcionários. Além disso, são realizadas orientações contínuas aos nossos colaboradores sobre a prevenção do coronavírus e como se comportar na presença de sintomas de problemas respiratórios e de febre".
A Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) afirma que "os aviões estão equipados para garantir a segurança dos passageiros. As aeronaves renovam 99,9% do ar que circula a bordo, contribuindo para que o covid-19 não se propague".
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