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Renda renascença: a nonagenária Dona Odete mantém viva a tradição em PE

Dona Odete: uma das pioneiras da renda renascença no agreste pernambucano - Divulgação/Fenearte
Dona Odete: uma das pioneiras da renda renascença no agreste pernambucano Imagem: Divulgação/Fenearte

Fernanda Fadel

Do UOL

06/04/2020 04h00

Dona Odete Cavalcanti Maciel

Dona Odete Cavalcanti Maciel

PROFISSÃO

Rendeira

LOCAL

Poção, no agreste pernambucano

HISTÓRIA

Faz quase 70 anos que se dedica à arte minuciosa da renda renascença. Condecorada como mestra-artesã de Pernambuco, é a única aprendiz viva da primeira turma de mulheres que fazem essa atividade manual em Poção.

Nascida em Poção, a 240 quilômetros de Recife, Dona Odete herdou o saber e o talento da renda renascença, arte de origem europeia trazida ao Brasil pelas freiras católicas no Nordeste nos anos 1930.

Foi por volta dos 12 anos que aprendeu a arte que perdura rendando até os dias de hoje, com 91 e o esforço da vista tomada pela catarata.

"Eu me lembro do primeiro dia que eu fui trabalhar e conheci a renda. E tem muitas coisas dos dias de hoje que eu não lembro, mas não sei por que a minha memória disso não se esquece", conta a senhorinha condecorada como mestra-artesã de Pernambuco.

Nos fios da memória

Dona Odete era a aluna mais nova da turma de principiantes formada por Elza Medeiros, conhecida como Dona Lala.

Naquele período, a renda ainda era uma atividade sigilosa das freiras. Mas o segredo da arte das linhas emaranhadas vazou quando Maria Pastora - que trabalhava em um convento em Olinda, foi passar férias em Poção e ensinou a renda à Lala.

Odete é a única aprendiz viva da primeira turma de artesãs de renda renascença em sua cidade - Divulgação/Fenearte - Divulgação/Fenearte
Odete é a única aprendiz viva da primeira turma de artesãs de renda renascença em sua cidade
Imagem: Divulgação/Fenearte

Lala fez uma peça que chamou a atenção de Dona Áurea Jatobá, uma mulher de posses que teve a ideia empreendedora de produzir renda em grande quantidade e exportar para o Recife.

E, assim, Lala foi encarregada de formar um grupo para ensinar a fazer renda, em tempos que ela era vendida como artefato com ares de requinte para as damas da sociedade. E Odete menina passou a produzir toalhas, colchas e roupas das seis da manhã às seis da tarde em ponto.

Na década de 50, a artesã estava com 20 e poucos anos quando assumiu o comando da turma depois que um "causo" aconteceu na pequena Poção. Lala fugiu com o namorado para uma cidade vizinha, abandonou a turma de alunas rendeiras, e Odete assumiu o cargo, passando de trabalhadeira para rendeira-mestre.

"Dona Áurea ficou aperreada com os trabalhos que tínhamos que terminar e me convidou para assumir o lugar de Lala", conta.

Aos 25 anos, ela se mudou para Pesqueira (a 29 quilômetros da cidade natal) e deu aulas do artesanato até alcançar a aposentadoria.

Poção se tornou a maior cidade produtora de renda renascença do país, e mestra Odete é responsável por ter instruído mais de 5 mil alunos até aqui.

Cheguei a ensinar 40 alunas ao mesmo tempo"

Dama da trama

Tudo começa com um esboço riscado em papel vegetal colocado com papel pardo embaixo apoiado em uma almofadinha redonda.

A primeira camada serve para marcar o desenho a ser feito, o segundo para dar firmeza ao molde.

A trama é formada como uma espécie de mosaico de tecido, onde se juntam pedacinhos de diferentes pontos (há mais de cem diferentes, com nomes como pipoca, xerém, vassourinha, abacaxi e mais), feitos de linha e lacê.

Eu fico futucando o dia inteirinho. Não posso parar de rabiscar e alinhavar a renda. Trabalho todo santo dia até as 22 horas"

"Quem quiser aprender, pode vir, as minhas portas estão abertas", diz, sem rastro de fadiga.

Aos 91 anos, Dona Odete ainda está na ativa com a renda renascença - Divulgação/Fenearte - Divulgação/Fenearte
Aos 91 anos, Dona Odete ainda está na ativa com a renda renascença
Imagem: Divulgação/Fenearte

O reconhecimento pela história que teceu ultrapassa décadas e continua em evidência. Em agosto de 2019, Odete ganhou prêmio e foi homenageada pelo Ministério da Cultura que a reconheceu como mestra-artesã. Participou de reportagens na TV, de diversas edições da da maior feira de artesanato da América Latina - a Fenearte (Feira Nacional de Negócios do Artesanato) e estão escrevendo um livro sobre sua história de vida e arte.

"Eu estou chamando a atenção e eu nem gosto. É todo mundo que quer entrevista, vem gente de todo o Brasil todo aqui. Toda semana vem gente falar comigo", explica Dona Odete.

"Eu vou até onde eu puder. Um dia de renda é um dia sem mazela. Só vou parar no último dia da minha vida"