Da janela de quarentena a musa do Instagram: conheça Dona Eunice, 90 anos
Na mesma velocidade que a pandemia de lives dispara nas redes sociais, chovem dicas de como ter um confinamento produtivo e transcendental. Entre quatro paredes, no entanto, tudo indica que a vida tem sido feita de seres humanos de pijama que enfiam a cara nos carboidratos enquanto pensam nos boletos a pagar. Diante disso, é alentador ouvir algo fora da curva ao formular a pergunta padrão: "o que você tem feito nesta quarentena?".
Numa quinta-feira com cara de domingo, a resposta veio enquadrada entre duas portas de vidro canelado, com a imagem de uma senhora de cabelos dourados, sobrancelhas angulares e atitude docemente desafiadora. "Tenho conversado muito com a vizinha pela janela e estou fazendo um ensaio fotográfico com ela", disse minha prima Andrea Setti, cujo olhar calibrado de diretora de TV foi capaz de enxergar poesia em plena área de serviço.
Foi assim que conheci Maria Eunice Iost, de 90 anos, uma professora aposentada que vem enfrentando o isolamento sozinha, "mas não solitária!", num edifício do bairro de Higienópolis, em São Paulo.
Após semanas postando informações sobre a trágica situação na qual a Espanha (onde vivo) se encontra devido à pandemia de covid-19, o post com a imagem provocou a maior quantidade de interações da história do meu Instagram. A reação faz sentido no momento em que todos vivemos ameaçados por uma doença potencialmente letal, principalmente para a "melhor idade".
"Ia dizer que ela é fofa, mas isso não se aplica a uma mulher com essa força", comentou @_k_i_k_a_13 ao ver a foto. De fato, não. Formada como professora em 1950, Dona Eunice começou a carreira percorrendo 16 quilômetros diários a cavalo para lecionar na zona rural de São Luiz do Paraitinga, no Vale do Paraíba, onde também alfabetizava adultos no turno da noite, à luz de lampião.
Continuou seus estudos na USP, universidade com a qual tocou um projeto de formação de professores indígenas, além de ter sido funcionária do departamento técnico da Secretaria de Educação de São Paulo por mais de 20 anos e coautora da série de livros didáticos "Aprender é Festa".
Das tecnologias atuais, tem um smartphone (só não dá lá muita trela para grupos de WhatsApp) e conselha:
A juventude de hoje precisa voltar a pensar e a criar, ao invés de ficar passivamente na frente de uma tela"
Mesmo que a pirâmide populacional brasileira seja distinta da espanhola, os números por aqui dão uma ideia do risco que o coronavírus representa à "melhor idade". Segundo o Ministério da Saúde da Espanha, 95% dos mortos (15.843 de acordo com os dados de 10 de abril) tinham mais de 60 anos.
Por essas e outras, Andrea vem se encarregando de fazer as compras no supermercado para a vizinha, que costumam incluir uma cervejinha, porque ninguém é de ferro.
Na semana passada, a gentileza foi retribuída com um almoço completo - costeleta de porco com mandioca (prato preferido), salada de Parma com figo e vinho -, depositado em bandeja de prata sobre a mesinha improvisada no corredor, através da qual trocam mimos, mantendo a distância de segurança.
Desde que a quarentena começou, café, docinhos e outras delícias vão e vêm diariamente. Para esta Páscoa, Dona Eunice encomendou seu bacalhau favorito, que compartilhará com Andrea.
Recentemente, minha prima também ganhou um par de agulhas de crochê da vizinha que, contudo, tem outras táticas para entreter-se no confinamento. "Leio poemas, faço bolos, rego plantas e converso com a lua", diz Dona Eunice.
Não fico choramingando pelos cantos, tenho coisas muito boas do passado para relembrar e dar risada, só lamento não ter aprendido a dançar e não ter curtido um grande carnaval".
Na última semana, também investiu um bom tempo em responder a perguntas enviadas a ela através da minha conta no Instagram, assim como a mensagens de amor vindas de países como a Itália e a Croácia.
"Moro em Paris, sou fotógrafa e, quando for ao Brasil, gostaria de fotografar a senhora", disse @lizamoura. "O vírus me conectou com o mundo", comemora a musa, que faz questão de manter os cabelos cacheados na linha em plena quarentena - "bobes, spray e pronto" -, além de caprichar no look para posar na janela.
Ainda assim, a professora não vê a hora de retomar o Curso de Extensão Cultural que frequenta duas vezes por semana na Universidade Aberta à Maturidade da PUC-SP, além das aulas de hidroginástica. Também não falta vontade de voltar à Sala São Paulo, para fazer valer sua assinatura da Orquestra Sinfônica de São Paulo.
Nascida numa família de 10 irmãos, cinco homens e cinco mulheres, hoje Dona Eunice é a mais velha de quatro (ela também tem 20 sobrinhos, 42 sobrinhos-netos e 39 sobrinhos-bisnetos). Uma irmã imigrou para os Estados Unidos e dois irmãos vivem em Araraquara, onde nasceu, no interior paulista.
"Não volto para aquele marasmo de jeito nenhum!", afirma a professora, que mora na capital há mais de meio século e usa o metrô e o sistema de ônibus para rodar a metrópole. "Andar na Paulista para mim é uma festa, adoro xeretar vitrines, entrar em todas as livrarias, tomar um café e viver intensamente".
Quanto terminar a quarentena, acho que vou ficar vários dias sem pisar em casa!"
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