Quarentena: restaurantes inovam para entregar experiência (e não só comida)
As medidas de isolamento social adotadas em todo o mundo em resposta à pandemia do novo coronavírus acertaram em cheio o calcanhar dos restaurantes: de portas fechadas (seguindo determinações de governos ou de forma voluntária), eles viram o público minguar na mesma toada de seus faturamentos.
Para tentar seguir funcionando de alguma forma, alguns tiveram que alterar seus modelos de negócio ou colocar ainda mais energia na única forma com que podem trabalhar: o delivery. Em tempos da crise da covid-19, as entregas estão mantendo (ainda que por cordas finas) um dos mais importantes setores da economia no mundo — que no Brasil representa mais de R$ 230 bilhões.
Nova realidade
Ainda que restaurantes já estivessem se adaptando ao modelo, diante do salto de virtualização que já vem tomando a sociedade nos últimos anos, muitos tiveram que fazer isso às pressas, da noite para o dia, para conseguirem manter algum fluxo nos caixas — e, assim, as contas pagas e os empregados contratados.
Até restaurantes de alta gastronomia ou que não tinham entregas se moldaram à nova realidade do confinamento — ainda que alguns já tenham até abandonado o formato em poucas semanas, frente às dificuldades logísticas e ao baixo retorno financeiro das operações. A margem de lucro costuma ser muito restrita e as taxas das entregas dobradas pelos aplicativos podem ser impeditivas para muitos.
Mesmo assim, as plataformas de entrega mais do que dobraram seu volume de pedido nos últimos dois anos, ao mesmo tempo que novos modelos, como os dos restaurantes fantasmas, ou virtuais, indicam uma nova tendência no setor. Sem espaço de salão, eles funcionam exclusivamente para entregas, de olho num crescimento de pessoas que preferem comer sem sair de casa.
Menu para delivery
Mas com a quarentena em curso e em busca de aplacar o desejo das pessoas que sentem falta de comer fora, muitos negócios se esforçam para tentar entregar "experiência" -- e não apenas comida. No Komah, badalado restaurante coreano de São Paulo, o chef Paulo Shin teve que antecipar seus planos para servir refeições por delivery.
Shin, que esperava construir uma cozinha central até agosto onde teria mais estrutura para entregas, precisou se adaptar no espaço em que mantém o restaurante na Barra Funda para a operação. "Até por isso, tentamos entregar o menu todo do restaurante, mas como alguns pratos não viajam bem, como o nosso steak tartar, que leva gema curada, tivemos adaptações", ele diz.
O chef reconhece que, na entrega, alguns pratos podem ter algumas características alteradas, por conta do calor da embalagem, por exemplo, que acaba por trazer umidade e interferir em algumas texturas. "?as o cliente que pede, conhece as limitações inerentes ao delivery, e nos esforçamos para tudo chegar da melhor forma possível", afirma.
Leia antes de comer
Como o restaurante também trabalha com um tipo de comida que não é muito familiar a todas as pessoas, ele e sua equipe criaram um manual que acompanha as entregas para explicar alguns conceitos e peculiaridades da culinária coreana, além de algumas recomendações. "Na casa das pessoas, perdemos esse contato do atendimento, que é tão importante. Por isso, pensamos que seria uma boa opção ter um guia que pudesse ajudar na hora de comer", diz.
Como o delivery envolve muitas embalagens para os acompanhamentos, Shin explica que é importante o direcionamento de como comer essas refeições em casa, como no caso do samgiopsal, uma pancetta glaceada que deve ser enrolada em folhas para ser saboreada.
"Nem todo mundo sabe a dinâmica, e queremos que as pessoas fiquem satisfeitas", ele diz. Para transportar um pouco do ambiente, também, as refeições chegam com o jogo americano, hashi e guardanapos exatamente como os usados no próprio restaurante.
Restaurante em casa
Desde que os restaurantes fecharam no México, o chef Jorge Vallejo, do Quintonil, um dos mais premiados do país, pensou como poderia deixar as pessoas mais próximas da vivência do restaurante. Ele se uniu a outros três chefs consagrados na Cidade do México (Edgard Nuñez, Eduardo García e Luis Robledo), todos com restaurantes concorrentes, para criar o En tu Casa en 8 Manos, um serviço que permite que os clientes tenham um jantar com menu degustação feito por renomados cozinheiros em casa.
O cliente pega no restaurante o kit com as preparações todas prontas — ou com detalhes para finalizar em casa — mais as bebidas (entre vinhos mexicanos e tequilas, claro) e pode ser feliz, quase como se estivesse num jantar gastronômico. O projeto foi tão bem recebido que os quatro agora "recebem" novos convidados a cada semana, como o celebrado chef indiano Gaggan Anand e o confeiteiro catalão Miquel Guarro.
Em Santiago, no Chile, o chef Benjamin Nast, do De Patio, se uniu ao chef de confeitaria Gustavo Sáez para um propósito semelhante: são 100 kits montados por vez pela dupla, incluindo sobremesas e bebidas para serem degustados em casa. As caixas vão com instruções para a montagem de cada preparação, e sua harmonização específica.
"A ideia, mais que levar o restaurante completo, o que seria impossível, é levar uma experiência distinta de entretenimento às pessoas. Permitir que elas interajam nesses tempos complicados com comida simples, que combine com o ambiente doméstico, mas bem feitas por chefs", diz Nast.
Em busca do diferencial
Muitos restaurantes também tiveram que adaptar seus menus e modelos para que suas comidas possam chegar às casas dos clientes. Mas sobretudo para se diferenciarem em um mar de opções que tomaram as redes sociais e os aplicativos de entrega.
"O problema maior do delivery é que ele acaba por igualar muito as coisas, a comida fica 'commoditizada' nas plataformas", afirma Diego Fabris, do ShareEat, um serviço de inteligência artificial para o setor gastronômico.
Sem os diferenciais de serviço e ambiente, a comida precisa se vender sozinha. O Koshô, restaurante de comida japonesa em São Paulo, tratou de investir muito nas embalagens — "para causar uma boa impressão" — e ter um serviço de entregas próprio. "O entregador fazendo parte da equipe e entendendo a peculiaridade da nossa comida consegue ter o cuidado necessário", garante Leonardo Yunes, um dos sócios do restaurante.
Eles também queriam que o cliente não sentisse uma diferença muito grande entre comer no salão ou em casa. Por isso, criaram um produto, a Koshô box, com o intuito de entregar todos os ingredientes prontos para que os clientes possam "colocar a mão na massa" e montar seus próprios sushis como os sushiman fazem no restaurante. As caixas chegam com o arroz já moldado, o peixe fatiado ou batido e temperado, tudo como peças a serem combinadas.
Finalizar a receita
Depois do distanciamento social, analistas do mercado acreditam que as pessoas tendem a intensificar seus pedidos de refeições e alimentos em casa, mas estão dispostas a buscar (e pagar) por experiências diferenciadas para isso. Ao permitir que os clientes possam fazer parte do processo de execução da receita, os restaurantes conseguem também tornar mais tênue o que separa uma refeição em casa do que uma experiência de sair para comer.
Nos últimos anos, o delivery já se transformou muito: passou do "disk pizza" para uma infinidade de opções de culinárias do mundo todo e abriu caminho para recebermos todo o tipo de alimentos em casa, de grãos de café a vinhos, de cestas de orgânicos a jantares estrelados. Nesse sentido, até mesmo as pizzarias, fundamentais para esse movimento, precisaram se adaptar.
Em 2018, a Bráz, rede com lojas em São Paulo e no Rio de Janeiro, passou a entregar na casa dos clientes sua pizza mais famosa e mais vendida, a Caprese. Criação da marca, a cobertura leva mozzarella de búfala, fatias de tomate caqui, tapenade de azeitonas e folhas de manjericão gigante, que são sobrepostas na hora, assim que a pizza sai do forno. A logística da montagem impedia que ela viajasse bem para entrega.
"Pensamos que seria uma opção mandar os ingredientes frios a parte, junto a um breve manual de montagem. O cliente recebe a pizza quentinha e apenas organiza os ingredientes na cobertura", explica Rafael Rigotto Cordeiro, coordenador de marca da Bráz. Segundo ele, logo de início a resposta dos clientes foi excelente, mas nas últimas semanas essa resposta cresceu ainda mais, passando a ser a segunda pizza mais pedida por delivery da rede.
"Isso certamente se deve à maior procura por refeições que possam ser finalizadas em casa, em família, criando uma experiência mais completa em comparação a um pedido de pizza 'comum', uma tendência que vem se demonstrando mais real em várias partes do mundo nesses tempos de isolamento social", diz ele, que adianta que a marca deve investir em mais opções de refeições para serem finalizadas em casa.
Para a quarentena, a Bráz também apostou em vendas com vinho, para os clientes terem em casa um jantar completo e desfrutar de momentos de descontração em família. "Tudo para que sintam como se estivessem na pizzaria", ele conclui. Mesmo sem sair de casa.
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