Coronavírus na Espanha: após pico de mortes, 4 passos ao "desconfinamento"
Após 48 dias de quarentena rígida, no sábado (2 de maio) os espanhóis puderam sair às ruas para fazer exercícios. Esse grande passo em direção ao "desconfinamento" acontece em uma semana repleta de boas notícias. Pela primeira vez desde que o estado de emergência foi decretado, em 14 de março, o número de altas hospitalares superou o de contágios por vários dias seguidos - nas últimas 24 horas, foram 2.570 curados e 1.147 novos positivos por coronavírus.
Símbolo da guerra contra a doença, o hospital de campanha montado nos pavilhões de eventos da IFEMA, em Madri, foi desativado, após curar 3.750 pacientes de covid-19. Com o número de mortos diários abaixo da casa dos 300 no país, o necrotério improvisado na pista de patinação no gelo da capital também deixou de ser necessário.
Aglomerações na retomada das ruas
Em condições normais, as únicas pessoas com menos de 30 anos que costumam circular pelas ruas de Barcelona (onde vivo há duas décadas) nas primeiras horas da manhã quase sempre estão voltando de alguma festa.
Hoje, no entanto, neste sábado ensolarado que escrevo este texto, os despertadores ecoaram aos primeiros raios de sol, já que os horários permitidos para que maiores de 14 anos façam exercícios ao ar livre são das 6 às 10 horas e das 20 às 23. Já os maiores de 65, contam com turnos especiais entre 10 e 12 horas e das 19 às 20, enquanto famílias com crianças são as donas das ruas entre 12 e 19 horas.
As faixas horárias segmentadas valem para cidades com mais de 5 mil habitantes em toda a Espanha. Mas, em Barcelona, segundo município com maior densidade demográfica do país (15.000 habitantes/km2, enquanto Madri tem 5.000 habitantes/km2), a segmentação não foi suficiente para evitar aglomerações.
Com Martinho da Vila cantando que "a vida vai melhorar" na playlist, me dirigi à Avinguda Diagonal por volta das 8h30 da manhã. Uma das principais artérias de Barcelona, a avenida tem um amplo calçadão à sombra de plátanos, além de uma ciclovia de mão dupla, no trecho que vai da Plaça Francesc Macià até a Zona Universitária.
Afastada do centro da cidade, a região costuma ser tranquilíssima para correr e andar de bicicleta. Hoje, no entanto, lembrava o Parque do Ibirapuera, em São Paulo, numa manhã de sábado. Quase ninguém estava de máscara (o uso não é obrigatório na Espanha, ainda que a grande maioria das pessoas lancem mão da proteção em espaços fechados e no transporte público).
Bastaram poucos passos para perceber que respeitar a distância de 1,5 metro seria utópico naquelas condições. E, de fato, pelo menos 100 corredores passaram a menos de meio metro de mim na primeira meia hora. Em vídeos enviados por amigos, também pude ver que, à beira-mar, a situação era bem mais crítica, ainda que previsível para o primeiro dia de libertação em meio a uma onda de calor.
Suor e serotonina
Morando na capital da Catalunha, nos acostumamos a passar batido por lugares como o Pavilhão Güell, cujo portão em forma de dragão foi projetado pelo arquiteto Antoni Gaudí. Hoje, no entanto, saboreei cada palmo da cidade por onde passei, bem como a sensação de liberdade provocada pelo simples ato de caminhar pela rua.
Após quase dois meses saindo uma vez a cada dez dias, só para ir até o supermercado da esquina, finalmente tive tempo de reparar em como a redução da poluição deixou o céu mais azul, e como a primavera devolveu as folhas aos plátanos (além do pólen feroz aos nossos narizes).
Também senti tristeza ao ver os cartazes envelhecendo nos totens, anunciando festivais e eventos que não vão acontecer; as vitrines paradas no tempo, com faixas da liquidação de inverno; marquises onde antes havia mesas de bar transformadas em alojamentos para gente que não tem um lar para se proteger da pandemia.
Entre os que jorravam o suor estocado, no entanto, dava para sentir a serotonina no ar. Não sei se foi fruto dessas moléculas correndo por minhas veias, mas acho até que algumas pessoas sorriram para mim (raridade por aqui, onde cada um no seu quadrado costuma ser a regra).
Mesmo feliz em ver tantas caras diferentes, no entanto, não conseguia deixar de pensar nas gotículas de saliva que pairavam no ar, entre tanta gente resfolegando bem mais que o normal, após quase dois meses de sedentarismo forçado. Então saí pela tangente, embrenhando-me nas ruas aristocráticas e vazias de Pedralbes, o bairro mais aristocrático e arborizado de Barcelona.
Foi uma ótima decisão. Depois de caminhar 8 quilômetros, para espanto dos meus músculos traseiros da coxa, voltei para a casa com ânimo para aguentar os dois meses que faltam para retomarmos hábitos como viajar, ir à academia ou toma um drinque no balcão de um bar.
Rumo à "nova normalidade" em quatro passos
Anunciado esta semana pelo presidente do governo, Pedro Sánchez, o plano de "desconfinamento" - batizado de desescalada, em espanhol - será executado em quatro fases. Dar um pequeno rolê pela cidade é a grande novidade da etapa de preparação para esse processo, que nos levará a uma "nova normalidade" (expressão da moda, utilizada pelos dirigentes e pela imprensa, sugerindo que, daqui pra frente, tudo vai ser diferente).
Programada para durar entre seis e oito semanas, a transição não será homogênea para todas as regiões do país e não há data fixa para avançar de uma etapa a outra. Mas, depois de quase cinquenta dias de isolamento rígido, aprendemos a ver com otimismo o fato de que teremos algo parecido com a vida como ela era lá pelo final de junho, se tudo der certo.
Como em uma gincana, cada província (território que agrupa municípios próximos, sem equivalente no Brasil) poderá mudar de fase ao cumprir quatro requisitos principais: capacidade do sistema de saúde, situação epidemiológica favorável de acordo com testes em massa, cumprimento das medidas de proteção coletiva e avaliação positiva dos dados socioeconômicos e relativos à mobilidade.
Caso aumentem os números de contágios de forma significativa, também existe a possibilidade de retroceder etapas. Por isso, é provável que o processo seja mais longo em Madri e Barcelona, as duas maiores cidades da Espanha, que concentram a maioria dos casos.
Até 10 de maio, quase todo o país, com exceção de algumas ilhas, estará na fase 0, ou de preparação. Por enquanto, além de dar uma escapadinha para ver o céu e mover as articulações, também está permitido levar os menores de até 13 anos para passear, 60 minutos ao dia, nos arredores de casa, com limite de um adulto por duas crianças e sem interação entre as que não vivam juntas.
Também podemos voltar a frequentar fisioterapeutas, cabeleireiros (paixão nacional) e outros estabelecimentos que ofereçam atendimento individual com hora marcada. Sem retocar as madeixas desde princípios de março, as espanholas celebraram a notícia com euforia. As novas medidas, no entanto, permitem atender muito menos clientes ao dia e, nas peluquerías mais cobiçadas (como a minha!), a fila de espera já é de várias semanas.
A era do petit comité
A partir de 11 de maio, entramos na fase 1, quando nossas vidas prometem ficar bem mais animadas. Por fim, poderemos reunir amigos e familiares em casa. Ainda não sabemos quantos, e nem em que condições. Mas certamente será em petit comité, assim como nos velórios, que voltam a ser permitidos.
Os maiores de 65 anos e outras pessoas que fazem parte do grupo de risco terão que esperar um pouco mais para participar dessas reuniões, o que significa que ainda não sei quando poderei abraçar os meus pais, que moram aqui pertinho.
Com a fase 1, também chegará o almejado momento de voltar a bares e restaurantes, apenas nos terraços, que funcionarão com 30% da capacidade - se já era difícil conseguir mesa ao ar livre antes da era pandêmica, deveremos aguçar nosso instinto de gladiador para a guerra que se aproxima.
A política do um terço de público também se aplicará a museus, igrejas e outros lugares de culto, que abrirão as portas. Pequenos comércios serão reativados, assim como espetáculos culturais de até 30 pessoas em espaços fechados, e máximo de 200 ao ar livre. Nesta etapa, ainda não poderemos viajar, mas os hotéis e alojamentos turísticos já podem voltar a funcionar. Como essas operações serão rentáveis? Eis a pergunta do milhão.
Vamos a la playa
A fase 2 está prevista para começar na última semana de maio. As principais conquistas dessa etapa serão a reabertura de cinemas e teatros (valendo a regra do um terço), bem como de shoppings centers e espaços internos dos restaurantes, com limitação - palavra do momento - de comensais. As escolas também entrarão em cena para aulas de reforço, além de atividades direcionadas a crianças de até seis anos.
Essas medidas, no entanto, só vão beneficiar as famílias que não têm acesso à tecnologia para ensino on-line e/ou meios de manter os pequenos em casa. As aulas propriamente ditas só devem ser retomadas em setembro, no início do próximo ano letivo na Europa. Casamentos em petit comité e viagens para uma segunda residência, desde que dentro da mesma província, são outros avanços do período.
Por volta de 10 de junho, quando devemos alcançar a fase 3, poderemos finalmente frequentar as praias (confesso que tive um princípio de ataque de ansiedade ao calcular quantos dias ainda faltam). Já às portas do verão, certamente celebraremos o primeiro mergulho do ano no Mediterrâneo, com um brinde em algum bar, agora nas mesas internas.
As discotecas e inferninhos em geral também voltarão à ativa. Mas bombar a pista ainda não será possível, já que só um terço do público poderá sacudir o esqueleto. Nessa etapa, diminuirão as restrições para restaurantes e a mobilidade em geral. E até as touradas devem voltar a acontecer, desde que cada pessoa da plateia disponha de 9 metros quadrados.
Se por um lado já temos uma ideia como será nosso futuro próximo na Espanha, ainda não há previsão para a abertura de fronteiras a visitantes de outros países da União Europeia - e muito menos de fora do espaço Schengen.
"Neste momento, ninguém pode fazer uma previsão confiável para julho e agosto. Teremos que aprender a viver com este vírus por vários meses, provavelmente até o ano que vem. Viajantes almejando um pouco de sol de verão nos próximos meses já estão lidando com a incerteza", declarou Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, fazendo-me agradecer que o Mediterrâneo é logo ali.
Economia em transe
Atualmente, os aeroportos espanhóis estão operando uma média de 300 voos diários (10% do normal), enquanto os trens de alta velocidade movem apenas 2 mil passageiros ao dia, ao invés dos 90 mil esperados para um mês de abril. A partir de julho, o turismo interno deve intensificar o movimento na malha aérea e ferroviária do país.
Mas, num país que recebe 83 milhões de viajantes estrangeiros ao ano, a ausência dos guiris, como se diz por aqui, seria um golpe duro para a indústria do turismo, que representa 12,3% do PIB e emprega mais 2,6 milhões de pessoas. Não à toa, no primeiro trimestre de 2020, que só computa duas semanas de isolamento, o PIB espanhol encolheu 5,2% (maior queda do século), segundo divulgado hoje pelo Instituto Nacional de Estatísticas (INE).
Proprietária de uma pequena casa nas Ilhas Baleares, onde a grande maioria dos turistas vem de outros países da Europa, já tive 60% das reservas canceladas para o próximo verão. Assim como milhares de espanhóis, estou negociando com o banco uma moratória no financiamento, amparada pelo decreto emergencial aprovado no início do mês que, entre outras medidas, suspende os despejos por falta de pagamento de aluguel e corte de luz, água e gás de coletivos em situação vulnerável.
Cada um no seu quadrado
Mesmo diante da possibilidade de uma alta temporada sem forasteiros, o setor do turismo para aquele que promete ser o verão da divisória transparente. Ao que tudo indica, essas paredes de acrílico servirão para separar mesas em restaurantes, espreguiçadeiras na praia ou piscina, e até poltronas em trens e aviões.
Também se fala em controlar o acesso às faixas de areia para evitar aglomerações e no uso de máscara à beira-mar, pelo menos na fila da cerveja no chiringuito (barraquinha de praia à espanhola). Como, quando e se tudo isso será executado, não sabemos.
Mas, nas atuais circunstâncias, essas imagens de ficção científica já nos causam euforia. Ou melhor, "euforia contida", como definiu com precisão científica o epidemiologista Fernando Simón, diretor do Centro de Coordenação de Alertas e Emergências em Saúde do Ministério da Saúde, ao esmiuçar os detalhes do "desconfinamento".
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.