Três mães-chefs revelam receitas que herdaram e agora ensinam aos filhos
Comida e afeto são inseparáveis. Segundo Paula Pinto e Silva, doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, a relação que estabelecemos com certos alimentos é um dos principais traços culturais de nossa formação. Afinal, aprendemos a comer antes mesmo de falar — e carregamos, para o resto da vida, as sensações que experimentamos nesses momentos.
Elas envolvem não apenas o prato em si, mas os rituais ao redor da refeição. Dessa forma, associamos determinados sabores a uma pessoa, a um grupo familiar ou de amigos, a um lugar especial. "Passamos a amar tanto determinadas comidas que sentimos saudade quando estamos longe de casa. A relação afetuosa com o alimento representa transmissão de felicidade."
Datas especiais, como o Dia das Mães, são a desculpa perfeita para compartilhar emoções à mesa. Preparar uma receita de família, que evoca sentimentos caros como amor e saudade, é o que torna o dia inesquecível.
Como inspiração, ouvimos os relatos de três mães que também são famosas chefs de cozinha. A partir de pratos emblemáticos em suas trajetórias, cada uma revirou o baú de memórias para compartilhar receitas e lembranças que herdaram de seus pais e avós e, agora, passam aos filhos.
Um cozido, muitas tradições
Sabores trazidos da Itália, de Portugal e do Uruguai compõem a história da chef Carla Pernambuco
"Minha família é uma mistura interessante: avô italiano e avó uruguaia por parte de pai, avô português e avó italiana por parte de mãe. Com isso, nossas tradicionais culinárias são misturadas também.
Sempre fui muito próxima de minha avó materna, Nely Mazzini. Era uma mulher urbana, forte, e excelente cozinheira. Ela morava em Porto Alegre, a três passos da minha escola. Era a casa da comilança, onde sempre tinha almoço pronto e muita gente.
De vez em quando, ela pegava o carro e ia para a fazenda, na fronteira com o Uruguai. Mandava matar um porco e fazia linguiças maravilhosas. Fez isso até os 80 anos.
Além dos pratos italianos, como lasanha e ravióli de miolos com acelga, ela fazia um cozido que, depois, virou a especialidade da minha mãe, Marlene.
O cozido é um prato de muitas nacionalidades, como minha família. Tem esse nome em Portugal, mas se chama puchero nos países de origem espanhola, pot-au-feu na França e bollito misto na Itália.
É daqueles pratos que só se faz para muita gente. Uma comida trabalhosa, feita por partes e com antecedência. E há muitas versões.
Os uruguaios, pela influência espanhola, põem grão-de-bico. Mas minha avó pôs um acento brasileiro na receita e servia com pirão. E eu acrescentei a banana e o milho.
Quando penso em um prato perfeito para o Dia das Mães, é o cozido que me vem à mente. Minha filha, Júlia, de 23 anos, adora essa receita, mas seu estilo na cozinha é outro. As novas gerações preferem preparos menos complicados, por isso ela elegeu o risoto de cogumelos como seu preferido.
Virou outro clássico da família, só que mais recente - meu marido, Fernando, aprendeu o preparo quando morou em Milão. Sempre que viaja para a casa de praia, a Júlia faz risoto para os amigos e já leva os ingredientes na mala. É assim que as tradições da família vão se renovando."
A galinhada que selou o casamento
Em torno do prato, em uma mesa de quintal, a chef Janaína Rueda conheceu a família do futuro marido
"Todo mundo conhece a galinhada como um prato-símbolo do Bar da Dona Onça. Foi a primeira receita que pensei para o menu porque ela já fazia parte da nossa história.
Logo no começo do namoro, o Jeffinho [Jefferson Rueda, chef de cozinha e proprietário do restaurante Casa do Porco] quis que eu conhecesse a família dele.
Eles moram no interior de São Paulo, em São José do Rio Pardo, em uma casinha bem simples. Como a copa é minúscula, construíram um telheiro no quintal, onde puseram uma mesa bem grande. Ao redor dela, tem pomar e galinheiro.
Cheguei lá bem nervosa, porque a mãe do Jeffinho, Carmen, é muito religiosa e não gosta de bebida. Comemos a galinhada naquele quintal e ela ficou apavorada comigo, porque bebi pinga com o pai dele, José.
Depois, quando fomos morar juntos e eu engravidei, tudo mudou. A Carminha amenizou e pude sentir todo o amor dela por nós. Virou minha mãe também.
Meus filhos também amam galinhada. João Pedro tem 14 anos e Joaquim está com 11. Desde pequenos, eles passam temporadas na casa dos avós, pegam aves no galinheiro, ajudam a matar e depenar.
Agora, durante o isolamento, descobrimos que os dois também amam cozinhar, algo que a gente não via antes porque não dava tempo. A galinhada segue sendo um prato nosso — e a gente nem precisa de ocasião especial para comer."
Arroz com feijão para matar a saudade de casa
Vivendo com os filhos em Paris, a chef Ana Luiza Trajano não abre mão da comida brasileira
"Tive uma segunda mãe: a Lucia Malaquias, que começou a trabalhar como cozinheira da família quando eu tinha três dias de vida. Ela sempre fez o melhor arroz com feijão do mundo e, até hoje, é o prato que me traz as melhores recordações.
Lembro que, quando eu acordava, o feijão já estava no fogo. O segredo dela é cozinhar os grãos em água, já com as cebolas cortadas em quatro. Depois a Lucia faz o refogado normal com alho, mas o feijão já incorporou o sabor da cebola.
Também faz diferença buscar o feijão novo na feira. Na minha família, nunca se comprou feijão em supermercado. Quando fica pronto, o caldo está grosso sem que a gente precise amassar os grãos. Faz toda a diferença.
A Lucia já se aposentou, mas continua trabalhando de vez em quando porque adora. Sempre que visitamos minha mãe na casa que ela mantém em Franca, no interior de São Paulo, a Lucia aparece e vai cozinhar pra gente. Não existe ir até lá sem comer o feijão dela.
Eu e meus meninos [Pedro, 13 anos, e Antoine, 9] estamos morando sozinhos em Paris há um ano e meio. E o feijão com arroz e farofa é o prato que nunca falta.
Outro dia mesmo, estava precisando de um colo e fiz arroz, feijão, carne moída refogada e purê de batata para o almoço. E os meninos não abrem mão de uma boa farofinha de ovo.
O pior é que, por causa da quarentena, meu estoque de farinha de mandioca está acabando! Assim que minha irmã puder me visitar, vai me trazer uns 15 quilos. É a única coisa que peço para trazerem para mim: comida brasileira."
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