As lições da Nova Zelândia, país que venceu a batalha contra a covid-19
A página de notícias do Ministério da Saúde da Nova Zelândia abre diariamente com informações sobre as estatísticas da covid-19 no país. As atualizações desta semana são de fazer inveja a qualquer canto do globo. Depois de três dias consecutivos sem qualquer registro de um novo caso sequer, a sexta-feira, dia 15, começou com um novo doente na lista — mas um cidadão que esteve completamente isolado em quarentena, e que já não transmite a doença.
Um dia após retomar praticamente todas as atividades, com a redução do nível de alerta desde as 23h59 desta quarta-feira, dia 13, o país exibe um índice de recuperação de 95% dos doentes (entre os 1.498 casos prováveis e confirmados), sendo que apenas dois estão internados.
A última morte aconteceu há cerca de 10 dias, totalizando um dos mais baixos índices do planeta: 21 em todo o período, desde que o vírus apareceu no país - o primeiro caso foi registrado no dia 28 de fevereiro. Sem transmissão comunitária, a comunidade científica já afirma que o país eliminou o vírus.
Ações rápidas e contundentes
A receita do governo neozelandês para liderar a batalha mundial contra a covid-19, pilotado pela primeira-ministra Jacinda Ardern, que bateu recordes de popularidade, foi o seu rápido posicionamento com o objetivo de eliminar o vírus — e não apenas reduzir a curva.
Para isso, adotou medidas rigorosas e antecipadas, sempre amparadas por um consistente respaldo científico. De imediato, as fronteiras foram fechadas e foram criados quatro diferentes níveis de alerta a serem adotados no país, com medidas claras sobre o que se podia ou não fazer.
O nível mais elevado foi o primeiro a ser colocado em prática — e antes mesmo da primeira morte ser registrada. Nele, os únicos serviços que podiam funcionar eram os de saúde, as lojas de comida, farmácias e postos de gasolina. Nada mais. Restaurantes, nem para delivery.
Ao mesmo tempo, foram anunciados apoios financeiros às empresas e o governo estabeleceu um diálogo aberto e transparente com a população, com pronunciamentos e lives diárias, o que foi fundamental para a adesão completa aos planos (veja, abaixo, os depoimentos de brasileiros que vivem na Nova Zelândia). Os testes foram feitos em massa e um sistemático rastreamento dos doentes foi colocado em prática.
Vantagens de pequeno território
Entra na conta, também, a privilegiada geografia neozelandesa. Com uma área de 268 mil quilômetros quadrados dominada por glaciares, montanhas e fiordes, o país é pouco maior que o estado de São Paulo e está dividido em duas ilhas principais, isoladas no meio do Oceano Pacífico.
A nação mais próxima (a Nova Caledônia) está a cerca de 2 mil quilômetros de voo. A Austrália, a 4 mil. Com uma população de cerca de 5 milhões de habitantes, tem uma densidade demográfica de apenas 18 habitantes por quilômetro quadrado (no estado de São Paulo a taxa é de 177, por exemplo). A cidade mais populosa, Auckland, soma 1,5 milhão de pessoas.
Diante deste cenário, a Nova Zelândia inicia agora uma nova fase. Desde a última quinta-feira, escolas, lojas e empresas já podem abrir as portas. As reuniões de amigos e familiares estão permitidas, desde que não ultrapassem o limite de dez pessoas. As viagens domésticas estão liberadas, assim como a reabertura de museus, bibliotecas, cinemas. Shows e eventos podem ser realizados, ainda com um limite de 100 pessoas. Tudo isso, claro, com a adoção de medidas rígidas de segurança.
A seguir, brasileiros que moram do outro lado do mundo respiram aliviados, relatam suas experiências e contam como as medidas colocadas em prática pela primeira-ministra impactaram seu dia a dia — e como vai ser a nova vida a partir de agora.
Ana Carolina de Lima
29 anos, enfermeira veterinária
Panorama: com o seu trabalho considerado essencial, Carol continuou dando expediente na clínica onde trabalha, mas com medidas de segurança rigorosas. Consultas, por exemplo, só de emergência, e com os animais deixados em caixinhas na porta, sem qualquer contato com os donos. Como consequência, seu horário foi reduzido em seis horas por semana e seu salário passou a 80% do valor. "Mas está tudo bem, entendo que era necessário", diz ela, que conseguiu negociar um desconto de 10% no aluguel da casa onde mora e viu a oferta de ajuda surgir de todo canto. "Você liga no banco e de imediato vem uma mensagem perguntando se você está precisando de apoio financeiro; até na conta de luz vem uma mensagem semelhante, está tudo muito flexível."
O que mais chamou a atenção: a segurança passada pelo governo e suas medidas.
Me sinto até mal de estar tão segura e ver minha família tão em risco no Brasil"
E agora? O primeiro passo vai ser poder "ampliar a bolha". Durante todo o período, por continuar trabalhando, havia o compromisso incondicional de só manter contato com o marido e os outros quatro funcionários da clínica. Carol também não vê a hora de voltar para a academia. "Foi o que mais me doeu."
Victoria Vajda MacNab
37 anos, estrategista de comunicação
Panorama: Vicky, o marido neozelandês e o filho Gael, de apenas 4 meses, estavam de férias no Brasil quando foi anunciado o lockdown na Nova Zelândia. Resultado: a viagem terminou às pressas, com uma volta de urgência e uma quarentena absoluta. "Com um bebê em uma idade que demanda tanto, a responsabilidade é ainda maior", diz ela. A família passou por um susto com o pequeno e, depois de aguardar por mais de uma hora dentro do carro no estacionamento da clínica, teve a consulta por telefone. Em um outro momento, a pediatra também avaliou do outro lado da linha. "Mas os atendimentos foram muito atenciosos e ficamos tranquilos". De licença maternidade até junho, sabe que o projeto em que estava envolvida no trabalho foi reduzido em 70%, mas nem isso a aflige. "Sei que poderei contar com os auxílios do governo se algo acontecer."
O que mais chamou a atenção: "O lado muito humano do governo. Na Páscoa, a Jacinda Ardern lançou uma caça aos ovos e incentivou as pessoas a pintarem ovos para as crianças procurarem. Os vizinhos passaram a colocar bichinhos de pelúcia nas janelas para as crianças verem durante os passeios pelas ruas".
Durante todo o período, vimos um grande sentimento de comunidade"
E agora? Vicky já está cheia de planos para rever a família neste fim de semana mesmo. "É um privilégio já estarmos reabrindo - e com segurança!".
Felipe Frossard
38 anos, engenheiro da computação
Panorama: Felipe trabalha na área de tecnologia de uma empresa cujo setor é dos mais afetados durante a pandemia: a companhia aérea Air New Zealand, que reduziu 95% dos voos com o lockdown e o fechamento de fronteiras. Embora as demissões já tenham atingido o quadro de funcionários, o departamento do brasileiro ainda não sofreu cortes. Desde o início da quarentena, ele passou a trabalhar 100% do tempo em home office e conseguiu manter o salário integral, embora a empresa tenha iniciado um programa de demissão voluntária e anunciado uma série de medidas de apoio a quem perder o emprego — entre elas, o benefício de até 70% de desconto em passagens aéreas por dois anos e o acesso a um fundo que está sendo criado pelos próprios funcionários, ex-funcionários e a empresa.
Não tem lugar melhor no mundo para estar agora"
O que mais chamou a atenção: o apoio econômico imediato do governo. "Morar aqui me traz muita tranquilidade. Se eu for demitido, sei que vou ter um bom pacote, que não vou para a rua sem nenhum respaldo."
E agora? "Os voos domésticos começam lentamente a ser retomados, mas a empresa ainda está analisando os cortes que precisa fazer; no meu departamento eles devem ser de um terço da equipe", diz ele. "A gente não sabe o dia de amanhã, a minha sorte é que tem muita oferta de emprego na minha área, mesmo durante a quarentena."
Synthia Leite
48 anos, executiva de RH
Panorama: no meio de um processo de seleção que tinha iniciado no final do ano, a mineira estava preenchendo seus dias com aulas de maori, jogos de tênis, idas à praia e muitas viagens em família. Já estava em contagem regressiva para realizar dois sonhos no futuro próximo: ir até a ilha de Fiji e comemorar o nascimento de um sobrinho mais o aniversário de 80 anos do pai no Brasil. O que ela não fazia ideia é que seus planos virariam de cabeça para baixo. Além de ter que cancelar tudo, Synthia foi contratada com uma ótima proposta em pleno lockdown e, de repente, se viu transformando o quarto de visitas em escritório e se equilibrando entre o home schooling dos dois filhos, as tarefas da casa e os novos compromissos profissionais.
O que mais chamou a atenção: a transparência e a forma como o governo se comunica. "Tudo com muito respeito, o que combina com os meus valores. Mentalmente, a forma e o processo ajudaram muito", diz Synthia.
Quando você está num lugar e confia na liderança, faz toda a diferença"
E agora? Synthia finalmente vai conhecer os novos colegas de trabalho a partir desta semana, através de um processo que ela mesma está implementando. "Os funcionários têm total liberdade de voltar como e quando quiserem", diz a nova responsável pela área de Gente e Cultura da empresa. "Estamos dando um tempo para as pessoas se acostumarem, com suporte total."
Gabriela Fiuza,
32 anos, coordenadora de marketing
Panorama: no momento do anúncio do lockdown, dois dias antes da implementação efetiva da medida, a loja onde Gabriela trabalha atendendo os clientes e coordenando o marketing decidiu fechar as portas. Imediatamente ela soube que a empresa se candidataria aos subsídios do governo, que chegaram rápido. "Foi tudo pago direitinho, o impacto econômico foi OK", diz ela, mesmo com seu salário reduzido a 80%. Nos primeiros dias da quarentena, uma surpresa: o proprietário da casa onde mora, a poucos passos da praia, ligou oferecendo 50% de desconto no aluguel por três meses ou enquanto ela precisasse. "Estou vendo tudo com muito otimismo e estou bastante confiante na situação do país", diz.
O que mais chamou a atenção: "A transparência do governo na condução da crise, com comunicação diária e pronunciamentos ao vivo", diz
Quando dizem 'somos um time de 5 milhões de pessoas' dá uma segurança incrível, todo mundo faz a sua parte"
E agora? A loja reabriu no final desta semana, com uma série de novas medidas de segurança. Entre elas, um livro para fazer o rastreamento total dos clientes, com dados de contato. "Estou vivendo uma mistura de sentimentos - estou meio tensa, meio nervosa, meio animada, tudo ao mesmo tempo".
Marina Mueller
35 anos, bibliotecária
Panorama: funcionária de uma biblioteca, Marina rapidamente transferiu seu contato presencial com o público para a internet, dando ênfase aos serviços de streaming e audiobooks. Durante duas semanas, fez voluntariado para a prefeitura de Auckland num esforço da cidade de mapear 15 mil idosos e suas necessidades específicas durante a quarentena. Seu salário não teve qualquer alteração; a maior surpresa da quarentena foi ter que dividir a casa onde mora com o marido com um casal de amigos brasileiros que estava de férias e ficou "preso" por conta do fechamento das fronteiras. Seu maior desafio agora? "Estou fazendo um curso de parto online com uma amiga para poder ajudá-la", diz Marina. "Sua mãe viria para acompanhar o nascimento do neto, mas, com as fronteiras fechadas, quem vai ter que aprender tudo sou eu".
O que mais chamou a atenção: "Tivemos uma excelente liderança, com medidas tomadas com antecedência e uma comunicação bem didática e transparente. Isso trouxe muita segurança para a população".
E agora? Embora os eventos presenciais estejam suspensos, a biblioteca está reabrindo esta semana. "A vida começa a voltar ao normal".
Gabriel Vilches
31 anos, desenvolvedor de softwares
Panorama: pouca coisa mudou na vida de Gabriel — as oito horas que costumava passar no escritório continuaram as mesmas dedicadas ao trabalho no home office. "Minha empresa, focada no mercado interno, não sofreu impacto nos negócios e manteve todos os funcionários", diz ele. "Dei muita sorte, não tive alteração no salário e os índices de produtividade se mantiveram." Durante mais de seis semanas, sua vida se resumia ao trabalho e às poucas saídas para ir o supermercado, onde as medidas do estabelecimento incluíram a criação de "mãos de direção" nos corredores, para evitar o encontro entre as pessoas, e a higienização completa dos carrinhos após cada uso.
O que mais chamou a atenção: "Os pronunciamentos do governo, sempre bem transparentes e educativos".
E agora? Na próxima segunda-feira, dia 18, haverá uma reunião presencial na empresa, quando o CEO vai anunciar as novas medidas.
Foi tudo tão tranquilo que o difícil é pensar numa volta!"
Tairine Luiz e Luiz Felipe Czarnobay
28 anos, assistente de saúde, e 29 anos, trabalhador da construção civil
Panorama: o casal de Santa Catarina começou o lockdown assustado. Tairine de repente se viu obrigada a parar de trabalhar por não ter recebido a tempo a renovação do seu visto, com o fechamento repentino do departamento de imigração, e Luiz Felipe teve o seu salário reduzido a 70% com a interrupção das obras onde estava trabalhando. Não demorou até as boas notícias começarem a aparecer. Tairine teve a sua situação regularizada por uma ação ampla do governo em relação à imigração e a oferta de ajuda apareceu de todo canto. Até a imobiliária que intermediou o aluguel da casa entrou em contato se oferecendo para negociar os valores caso fosse necessário. "Felizmente, não precisamos recorrer a estas medidas", comemora Tairine.
O que mais chamou a atenção: a antecedência com que as medidas, super rigorosas, foram tomadas.
No início foi muito assustador, mas depois vimos que isso foi fundamental"
E agora? Luiz Felipe voltou a trabalhar há duas semanas, quando o governo começou a liberar alguns setores, e se deparou com um cenário que o deixou bem tranquilo. "Há muito mais normas de segurança e controle, desde o distanciamento e a limpeza nas obras até o rastreamento total de todos os trabalhadores".
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