Coronavírus na Espanha: os altos e baixos do processo de "desconfinamento"
Atrás da porta de vidro, o cabeleireiro explica que devo esperar a vez na calçada, ainda que as cadeiras da recepção estejam todas vazias. Minutos depois, uma cliente sai e sou convidada a entrar. Limpo as mãos com álcool gel, visto um par de luvas, calço protetores de sapatos, coloco uma máscara cirúrgica e sou envolta em uma bata descartável.
Vestida como um médico prestes a entrar na sala de operação, entrego minha bolsa à recepcionista (que a veda em um saco plástico hermético) antes de, finalmente, sentar-me. "Um terço do nosso tempo agora é dedicado aos processos de higiene", diz Flor García, enquanto trata de devolve-me a dignidade capilar perdida na quarentena.
Em minha carreira jornalística, jamais pensei que escreveria sobre o ato de ir ao cabeleireiro. Mas a cena é um fiel retrato de como se convive com a pandemia de covid-19 em Barcelona nos dias de hoje, onde rituais semelhantes acontecem nas entradas de supermercados, escritórios, pequenos comércios e outros estabelecimentos autorizados a funcionar.
Em 14 de maio, a Espanha completou dois meses de estado de emergência devido à pandemia de coronavírus, com um total de 27.321 mortos, 229.000 contagiados e 134.000 curados. Os números acumulados ainda colocam o país na quarta posição do ranking mundial por óbitos.
Mas, após cumprir mais de 60 dias de um confinamento classificado entre os mais estritos do mundo pelo estudo Rastreador de Respostas Governamentais, da universidade britânica de Oxford, os espanhóis estão colhendo os frutos. Na última semana - a segunda do processo de "desconfinamento" -, o número de vidas perdidas diariamente baixou de 150 e a taxa de novos contágios diários já é inferior a 0,20%.
Vontade de festa, né minha filha?
Batizado de desescalada, o processo que nos conduzirá a uma "nova normalidade" foi inaugurado em 2 de maio e será executado em quatro fases. A cada semana, os governantes de cada comunidade autônoma (equivalente a estado) indicam quais províncias estão prontas para passar à etapa seguinte, com base em critérios como capacidade do sistema de saúde e situação epidemiológica. Para que a mudança seja efetivada, no entanto, é preciso ter a aprovação do governo central.
No primeiro "exame", realizado no fim de semana passado, foram reprovados os pedidos de inclusão das cidades de Valência e Madri na almejada fase 1. A etapa marca o início da reativação social e econômica, já que permite reuniões de grupos de até 10 pessoas, além da abertura de bares, restaurantes (somente mesas ao ar livre e com 50% da capacidade) e lojas, sem a necessidade de atendimento com hora marcada
Ou seja, um pequeno alívio diante da previsão de que o PIB espanhol encolherá 9% em 2020, e que 3,4 milhões de trabalhadores já tiveram seus contratos de trabalho suspensos temporariamente, segundo o Instituto Nacional de Estatística. A negativa, no entanto, não foi suficiente para fazer com que alguns moradores da cidade cancelassem os planos de celebração, obrigando a polícia a acabar com 400 festas no fim de semana posterior ao veto.
Economia X saúde: a polêmica chega a Madri
A "candidatura" de Madri a ingressar nessa etapa mais liberal provocou a primeira grande polêmica política da era pandêmica na Espanha. Por considerar que a capital não estava pronta para um relaxamento das medidas de isolamento social, a diretora geral de saúde pública da região, Yolanda Fuentes, pediu demissão, colocando em evidência que a governadora madrilena, Isabel Díaz Ayuso (Partido Popular), estava disposta a abrir mão da prudência sanitária em nome da reativação econômica.
O fato foi confirmado por ela mesma dias mais tarde, e aplaudido por um grupo de manifestantes de direita que tomou as ruas do bairro de Salamanca (metro quadrado mais caro de Madri). O embate acontece no momento em que seu partido, que comanda a oposição, retira o apoio ao presidente do governo Pedro Sánchez (Partido Socialista Espanhol) para manter o estado de emergência, ferramenta constitucional que permite ao poder central do país restringir a mobilidade de pessoas, entre outras intervenções.
Enquanto Madri anseia por reativar a sua economia em meio a controvérsias, o governador da Catalunha, Quim Torra, vem adotando uma postura de cautela, optando por manter Barcelona na fase 0 por pelo menos mais uma semana (em ambas as cidades, as lojas poderão atender sem hora marcada a partir da semana que vem, mas restaurantes e bares seguirão fechados).
Conhecido por sua posição pró-independência, ele também vem insistindo em retomar o comando integral das pastas de saúde e transporte, transferidas ao governo central durante o estado de emergência, alegando que poderia administrar a crise de forma mais eficaz se tivesse autonomia. Principal foco da pandemia de covid-19 na Espanha atualmente, a região chegou a registrar 60% das mortes do país e 938 novos casos na última quarta-feira, somando 62 mil positivos confirmados e 11.440 óbitos.
Barcelona voltando à vida
Mesmo estando apenas no início do processo que deve nos levar a uma "nova normalidade", e com indicadores que exigem prudência, Barcelona já respira uma atmosfera bem menos tétrica que a de um mês atrás. Desde que o processo de "desconfinamento" começou, podemos sair para passear e fazer esporte uma vez ao dia, divididos em faixas horárias que vão das 6 às 23 horas.
É alentador ver a vida voltando às ruas e voltar a mexer músculos e articulações que andavam atrofiados. Mas isso também tem efeitos colaterais. Preocupado com a explosão das consultas a ortopedistas (traumatólogos, em espanhol: nome que sempre achei dramático, mas que é altamente adequado para a época), a Sociedade Espanhola de Medicina do Esporte publicou esta semana um documento com "recomendações para o reinício da prática esportiva após o confinamento".
A voracidade com que os espanhóis passaram a correr pelas ruas também gerou aglomerações nas zonas mais agradáveis para curtir ao ar livre. Depois de semanas discutindo como passar o tempo em casa, as aventuras das saídas atléticas assumiram o protagonismo nas rodinhas de amigos (pelo Zoom, é claro) e nos noticiários.
Em Barcelona, a área mais crítica é a orla, mesmo com as praias abertas apenas para a prática de atividades como natação e SUP. Para evitar o mesmo problema, vários parques da cidade continuam fechados.
No calçadão em que costumava andar habitualmente, na Avenida Diagonal, o movimento também tem sido muito maior que o normal. Entre a quantidade de gente (sem máscara) e a incapacidade de vários cidadãos em manter-se na "faixa" da direita, o intercâmbio de baforadas entre corredores, patinadores e andarilhos acaba sendo intenso.
Também se vê gente andando fora do horário estipulado (os maiores de 70 anos parecem ter um gosto especial pela subversão), grupinhos de amigos infringindo a norma do exercício individual e até quem cumprimente amigos com beijos, comportamento tão temerário como soltar um espirro em público — com a diferença de que, no auge da primavera e da temporada do pólen, o segundo não pode ser evitado.
Após algumas tentativas de caminhar pelo meu lugar cativo, acabei desistindo e me converti em garimpeira de ruas e praças vazias. Vasculhando uma das urbes mais densamente povoadas da Europa, encontrei lugares onde posso espirrar sem atentar ao pudor.
Disciplina é liberdade
Já na fila do correio, do supermercado e de restaurantes com comida para levar, a distância de 2 metros entre as pessoas é marcada por adesivos no chão e seguida com disciplina pela maioria. Divisórias transparente também estão por todos os lados, dos caixas das lojas a uma boa parte dos táxis. "Podemos trabalhar seis dias por mês", me explica um taxista que espera por um passageiro em uma longa fila em frente ao Hospital Clínic, o maior da Catalunha. Apenas 20% da frota está nas ruas diariamente e, mesmo assim, muitos motoristas passam várias horas ociosos.
Para desafogar o sistema de transporte público, a prefeitura de Barcelona vem incentivando o uso de bicicleta e os deslocamentos a pé. Até o fim do mês de maio, terão sido implantados 21 quilômetros de ciclovias e 30 mil metros quadrados a mais de espaços para pedestres. Uma das principais avenidas do centro histórico, a Via Laietana deve ganhar mais 4,15 metros de largura nas calçadas e pistas serão fechadas para o trânsito de automóveis na Av. Diagonal e na Gran Via, as duas maiores artérias da cidade.
Nos próximos meses, o sistema de bicicletas compartilhadas deve ganhar 57 novas estações. Além de promover o distanciamento social, as medidas são parte de um plano para que a cidade não volte ao antigo normal após a pandemia em termos de trânsito e poluição. O projeto também prevê estímulos para o home office e a implantação de mais áreas verdes.
Baile de máscaras
Desde 4 de maio, o uso de máscaras no transporte público tornou-se obrigatório em toda Espanha. O governo também recomenda lançar mão da proteção quando é impossível manter a distância social de dois metros, e vem estudando estender a obrigatoriedade para todos os espaços públicos. Depois de meses convivendo com o novo acessório, pouca gente parece ter clareza sobre qual o tipo mais adequado para o cotidiano.
O governo da Catalunha distribuiu máscaras cirúrgicas para a população, enquanto o de Madri investiu nas FFP2 e FFP3 (equivalente à N95). Horas depois da iniciativa ter sido levada a cabo na capital, no entanto, o Ministério do Consumo emitiu um comunicado dizendo que esses modelos eram recomendados apenas para os profissionais da saúde, já que oferecem proteção em duas vias (na entrada e na saída de ar).
Desde que a crise do covid-19 se abateu sobre a Espanha, mais de 43 mil enfermeiros e médicos (um quinto do total de casos confirmados) foram contagiados e ainda há queixas sobre falta de materiais de proteção nos hospitais, incluindo as máscaras FFP2 e FFP3.
Dolce vita na fase 1 do desconfinamento
Com ou sem máscara, almejamos a vida de quem já pode passar para a fase 1. É o caso dos que vivem em cidades como Sevilha, Santiago de Compostela e Bilbao, onde, já no primeiro dia com terraços de bares abertos (com 50% da capacidade), a polícia teve que espalhar a roda em estabelecimentos que não conseguiram manter o distanciamento entre boêmios saudosos.
"Caos en las terrazas", dizia a manchete de um jornal do País Basco. Sob a ameaça de multas de 600 euros por incumprimento das regras, alguns proprietários preferiram fechar novamente até que a sede dos clientes diminua. Mas, na maior parte do país, a liberdade recém adquirida vem sendo consumida com moderação.
A corrida aos bares é uma pequena demonstração do que nos espera quando chegar a hora da abertura das praias, prevista para a distante fase 3. Diante de tanto surrealismo, o que parecia ficção científica começa a fazer sentido, a exemplo das propostas de municípios praianos para o próximo verão.
Parcelar a praia em lotes com reserva prévia, estabelecer turnos e setores por idade, reduzir o número de espreguiçadeiras de aluguel e monitorar a lotação via app são algumas das possibilidades.
Já a vida noturna, certamente estará mais animada no mundo virtual do que na vida real. Entre os maiores festivais do planeta, o Primavera Sound e o Sónar, de Barcelona, postergaram suas edições 2020 para 2021.
O Sónar, ao menos, manteve o Sónar+D (seu congresso de criatividade e tecnologia) em setembro, com transmissão online gratuita. Ícone dos verões barceloneses, a discoteca ao ar livre La Terrrazza fez sua badaladíssima abertura na sexta-feira, 15 de maio, em uma live para 500 pessoas. O tema da festa traduz o que pensamos agora: "nos recusamos a cancelar o verão".
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